Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



domingo, 29 de agosto de 2010

ACONTECEU NO CARNAVAL



Suzana C. Guimarães


Uma cidade fora do mapa. Carnaval. Três ruas, uma avenida, uma pousada. Ou melhor, uma pensão. Ovo frito em cima do arroz, opcional. Televisão em preto e branco com tela verde, plástica, para dar cor. Um único quarto disponível. Um grupo perdido de onze, viajando sem destino. Um quarto cujas janelas davam para a única avenida. Dez camas estreitas.

Assim começa a história. Ou termina. Ele e ela se conheciam há anos. Encontravam-se esporadicamente em reuniões de trabalho. Cada um com a sua vida e a vida de cada um muito mal desenhada. Esboços de tentativas. Nada de concreto. Um queria o outro, mas não admitiam. Às vezes, uma encostada mal passada em corredores estreitos, abraços mais apertados. Às vezes, alguns sustos, olhos que se viravam para trás para ver outros olhos fixos. Olhos, olhos, olhos, sempre os olhos. Diziam sempre mais que a boca. Uma certa relutância. Uma certa implicância. Um perguntava pelo outro. Um queria saber do outro. E mais nada.

Até que o grupo decidiu viajar, sem rumo, sem antecedências. Foi tudo num imprevisto que os dois se viram naquele quarto com mais nove. Havia alguns varais de cortina de chita tentando separar camas. Havia muito barulho na avenida, gente bêbada voltando para casa. Cada um, uma fantasia. Cada fantasia, um corpo desfalecido de álcool. No quarto, silêncio. Foram chegando aos poucos, ora três, ora quatro. Já era madrugada. Ela chegou pensando ser a última. Sentou-se na beira da cama, pensou em tirar a roupa que colava do pescoço às canelas. Maluquices! Desistiu quando viu ele, o último, abrindo a porta, devagar, enfiando a cara para dentro do quarto e dizendo olá baixinho. O tempo correu lento a partir de então. Pela primeira vez, quase sozinhos, em tantos anos. Não havia cama para ele, apenas um colchão no chão. Colchão fino, de espuma. Ele se sentou na beira da cama dela. Olhou as horas no relógio da parede, vinha luz pelas frestas das janelas. Havia silêncio e três barulhos: um ronco em uníssono, a respiração dela, a respiração dele. Ele colocou as mãos entre a cabeça, os cotovelos nas pernas e olhou para o chão. Pensou em seda, casulo, triângulo, rota, crisálida, sonho, sentiu calor e olhou para ela. Cansada, desgastada das andanças pediu colo. Começava ali a história das impossibilidades possíveis. Com certeza, apenas colo, cafuné nos cabelos. Ele a puxou e deu colo. Olhou o relógio, mais uma hora rodada pelos ponteiros. Ela se aninhou mais no peito dele. Ele, encostado na parede, pensava para trás - histórias mal resolvidas. Tempo engolindo velhos tempos. Passava a mão com calma nos cabelos dela. Ela murmurou, disse ter descido meia ladeira e confessou se sentir bem. Foi o mote. Foi o bote. Quando viu já estava no chão, a cama rangia, molas velhas. Ela não viu o movimento. Pensava para trás - histórias mal resolvidas. Tempo engolindo velhos tempos. Ele sentia calor, pediu para tirar a camisa, ela olhou em volta, claro que não, olhava-o nos olhos. Ele não queria saber, estava ardendo, dois maços de cigarro não resolveriam a questão. Ela empurrou o corpo dele com o pé, então tira. Ele tirou tudo. O grupo dormindo. Cortinas trapos quase transparentes que nada tampavam. Ela, agarrada à malha colante. Nem mexia. Ele procurava pele, ela ria e falava. Ele cochichava, implorava silêncio, ela ria. Quanto mais ele procurava pele com os dedos, mais ela ria, aquilo era ridículo demais. Pensavam os dois para trás - histórias mal resolvidas. Tempo engolindo velhos tempos. A boca dele, beijos surrealistas. Tocavam abertas, secas, engolindo o rosto dela, o tempo que se perdeu para trás. Agora, a realidade no colchão de uma velha pousada. Alguém mexia na cama. Silêncio. Paralisia. Olhos fixos em outros olhos. Respiração suspensa. Um homem nu em cima de uma fantasia de patinadora no gelo com saia de filó. Os paetês da malha piscando, os peitos arfando. E já não sabiam mais, se melhor nas molas velhas, se melhor na espuma fina. Pressa e calmaria. E, por fim, ele a deitou novamente no chão, no colchão puído, a cabeça dela batendo no assoalho. Barulhos, sussurros, risos. Compasso nas pernas. Duas abriam, duas fechavam. O filó subia, o filó descia. Ele agradecia à engenharia a invenção de malhas para ginástica. Fendas estratégicas. Ela pensava em planícies, num cavalo branco galopando nelas. Passou uma cavalaria na avenida. Ele pensava em casulo, na morte. Em jogar fora maços de cigarro. Ela gemia. Desconforto nas costas, doía-lhe as costas. Ele a girava para cima. Implorava silêncio. Ela falava como se não houvesse fantasias desmaiadas. Tão pouca luz, tanta visão. Os ponteiros girando horas. Corpos se mexendo. O vento brincava na porta fechada daquele quarto. Ele nu. Ela deitada ao lado, olhando as luzinhas dos paetês. Olhando o tempo para trás. Olhando um dia clareando. Pensando num tempo engolido por outro que viria.

A dona da pensão fazia café, assava pães. Os cheiros invadiam o quarto. Fantasias ressuscitavam de suas mortes. Dois corpos, um no chão, outro na cama, fingiam dormir. Diziam a si mesmos, igual mantra "fantasia, fantasia...".

Ele pensava na transparência da seda, tão cintilante, tão segredo, tão prisma. Ele pensava em amoras, crisálida... Ele pensava em casulos mergulhados em água quente que mata, que mata a larva do bicho. Do bicho-da-seda.

Ela sentia, sentia.