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Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



sábado, 29 de setembro de 2012

O DONO DA FILA TINHA DUAS MEDIDAS

(Suzana Guimarães - arquivo pessoal)

No primeiro dia, ele me olhou com bastante braveza e me apontou o final da fila. Eu não sabia que havia filas. Ele era o dono da padaria. Tinha o chapéu de chefe na cabeça, e bastante simpatia. Eu me senti a mais errada dos humanos. Corri para o fim da fila e, todo dia, eu para lá ia porque a fila era por ordem de tamanho. Eu era pequena, ele, grande. Eu o admirava porque seus pães eram bem feitos, milimetricamente medidos, sal no ponto, nem a mais nem a menos. Ele sabia sovar bem. Ele tinha dedos mágicos, braços longos e fortes, artísticos, inclusive. Teve quem corresse para passar na frente, mas ele era contundente, dizia que ali era um lugar de regras a serem obedecidas. O pão de cada um que esperasse.

Um dia, chegou um menor que eu. Vestia casaca e tinha um cravo de ouro na lapela.

O chapéu branco imaculado desceu em gesto rápido ao vento, em elegante reverência.

Tão lindo aquele cravo de ouro, parecia conter, inclusive, um diamante!

O menor que eu foi direto ao balcão. O pessoal da fila percebeu. O guarda no trânsito percebeu. A prostituta que fazia ponto em frente à padaria também percebeu.

O chapéu subiu e desceu dos céus ao chão, do chão aos céus.

O pessoal da fila foi desaparecendo, um por dia. Os pães passaram a ser feitos com dois pesos e duas medidas... e até a prostituta, tão vendida, procurou outra freguesia.

A padaria? Fechou.

Por Suzana Guimarães
 

sábado, 15 de setembro de 2012

QUANDO BASTA

 
 
(fotografia gentilmente cedida por Iracema Buscacio)
 
 
O que eu quero é só isto, olho com olho, boca com boca, sexo com sexo, nada mais, somente isso. Ah! Almas em harmonia.
 
Eu vou esperar o amor. Há dignidade também num meio-fio de calçada. Eu me sento e espero. Ele há de passar e de se fazer claro.
 
Perdi quantos amores de uma só vez? Não sei. Dois ou três. Dois e meio, pois até o desconhecido, eu amei. Aquele que poderia ter sido, aquele que nunca vi, mas amei, só amei.
 
Amores nascidos em tempos diferentes, mas mortos de um golpe só. Mas, quem disse que amor se vai de um golpe só? Não é estrela cadente, que, de repente, se vai. Foi. Você mal viu. Amor arruina-se aos poucos, em golpes pequenos e baixos. No instante final, um livro se abre e você vê tudo aquilo que fingiu não ver. Fazer o quê? Guardar em pastas no arquivo morto.
 
No cinema, eu chorei. Na realidade, queria berrar, mas o único som que eu emitia era o fungar do meu nariz e o do papel barulhento que catei na minha bolsa para enxugar o rosto molhado, enquanto a moça cantava o verão que ela não viu passar (*).
 
Eterna ilusão, a de estendermos o brilho de um amor que já era, virou estrela, está lá, mas não mais existe. Pior que o amor pela metade, o amor que não vi, só senti. Aquele amor que eu não reconheceria se me esbarrasse nele, na dobra de uma esquina. Mas, eu também não reconheceria meu tio Edgarzinho, nem os primos e primas, sequer meus namoradinhos de portão.
 
Eu, hoje, não reconheceria ninguém. Eu, hoje, estou fechada em paus, animal ferido, enjaulado, mas querendo sair. Acabou tudo. Dois amores e meio. Sobrou eu.
 
 
 Por Suzana Guimarães
 
 (*) Referência ao filme "Bem Amadas", dirigido por Christophe Honoré.