Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



segunda-feira, 11 de abril de 2011

ENFIM, aconteceu

ilustração, por R. Meneghini

Tempo, senhor traiçoeiro. Travaram luta, ele e minha alma. Ele queria todas as coisas, agenda completa, bem preenchida, caderno de receitas por ordem alfabética, livros enfileirados, roupas guardadas em degradê de cores. Ele queria cochilos imprevistos, beijos e abraços furtivos, locomoção, desvarios logo ao amanhecer. Ele queria palavras, palavras, um punhado de encher as mãos... Ela, a alma, queria silêncio, diálogo de olhos, perfume no ar. Ela queria esperar o dia certo dos acontecimentos, ela insistia em conjugar o verbo esperar, caminhar, e vivia sonhando, tentando alcançar primaveras eternas... ela também sempre ansiou por palavras, principalmente as mais difíceis.

Travaram luta, os dois. Não fiquei para ver o desfecho, parti para outros combates, ocupada demais, deixei que os dois se entendessem. Luta nem sempre é briga, pode ser dança. Que dancem os dois, então!

Mas o tempo, que não traiu minha alma, apenas a provocou, instigando-a a uma boa luta, traiu meu corpo, na estrada, enquanto eu fazia percursos incompletos, por puro medo dele, dele me alcançar; por isso, o incompleto.

Farei um caminho, o meu caminho, e sequer passarei pela Espanha. A minha rota é certa, longa e demorada. Não sei como estará ele, o tempo, nem minha alma (dela, ando me escondendo), mas com certeza, levarei no coração outros corações, pulmões, dedos em teclados, mãos. Levarei os toques que me deram, os enfeites nos cabelos, os presentes.

Meu caminho tem bilhete de ida e volta e com certeza haverá paradas para um café, ralo, sempre ralo, um pouco de pão, copos d'águas, a troca de nossos risos e até das mágoas.

Em cada parada, deixarei um pouco de mim, pois assim devemos ser, descascados, descascando, passando e deixando, pelo menos, pelo menos, um perfume ainda não inventado, algumas cartas, bilhetes, flores em ramalhetes.

                                           Suzana Guimarães, a LILY.


Nota: mesma publicação, na mesma data, em O Medo De Suzana.

domingo, 10 de abril de 2011

ENTREMENTES





Sou o respiro que antecede duas línguas




aquele que mal se sente



sou o vão entre duas bocas



o não, não esquecido




Sou um brilho opaco que passa rápido



entre olhos que se olham



sou lágrima seca que vive escondida



não jorra, enganosa.




Sou a palavra desmaiada, ainda viva, ainda viva



que apenas adormecida



existe, mesmo que supostamente esquecida




Sou o excesso de lençol



sou a cama dura, macia



desconforto



sou muita luz, pouca luz



sou dor fictícia




Sou desgosto



sou porto d`alma



sou pensamento, saudade, lembrança




Sou um risco riso de sonho.



Impalpável...



                                                            
                                                                  ( por Suzana Guimarães)

terça-feira, 5 de abril de 2011

DOCE HOMEM



Doce homem de veste rota, cabelo grosso, que me deixa louca. Doce homem duro, rude, amargo, que me invade inteira, enrosca e se encosta e me toca com mãos de nuvem. Doce homem, corpo
cavernoso, de riso libidinoso. Doce homem intransponível que transponho com flor em punho. Doce
homem sem odor que cruza em mim praças de tribos indígenas e faz em mim campo de lutas longínquas
e que me deixa à míngua, e que me deixa em palavra nula, nua, em delírios por sob língua, por sob
pelos, por sobre devaneios, que parece me fazer um favor, um fervor da mais insana reza... vem, sem pressa e me refaça, me desgasta, me amassa e subtraia, vem, e me faça da planta, muda.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

em segredo

(fotografia, por SCG)


Postagem nova em "O MEDO DE SUZANA"
P.S.: é pra você

sábado, 2 de abril de 2011

SOBRE A PRIMAVERA


fotografia, por SCG


A minha verdade é primavera. Ontem, saí para as ruas da cidade sem casaco de frio. Quando passei pela orla marítima, senti cheiro forte de maresia. Na noite anterior, senti ventos na janela, na hora de dormir, convidando-me a voar, mesmo seca. Sufoquei-me no inverno passado, tornei-me quase um graveto.

Sim, sufoquei-me... Palavras, casacos por sobre ombros, pesando, mas fazendo-se pouco.

A minha verdade é uma insistência em renovar canteiros, adubar a terra, trocar as flores, sentir cheiros novos. Não quero mais as sementes, pétalas, rosas e espinhos daquela primavera, a que passou. As cores fascinaram-me, tocaram-me profundamente, com tamanha intensidade que alcancei o inverno, duro, rígido, sem perceber.

Sim, sufoquei-me... Palavras, casacos roçando meus seios, minhas costas, braços, pernas, eu toda. Aquelas flores todas, odoríficas. Eu andava pelas ruas, e elas saíam pelas mangas, pelas frestas, entre botões.

Jaz um graveto em terra, não importa, há de chover, há de molhar, há de voar e eu hei de alcançar tudo aquilo que ainda não conheço, mas que me espera, pois toda semente espera.

A minha verdade, na realidade, é mais sonho que verdade.

                                                   por Suzana Guimarães