Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



quarta-feira, 26 de maio de 2010

UM MINUTO

                                                           Suzana Costa Guimarães


Ela pediu um minuto, a noite. Tinha as vestes alaranjadas, daquela cor que se vê ao longe quando o sol se põe. Os cabelos brilhavam do azul de também fim de tarde. Ela emitia os sons distantes do silêncio. Ela era apenas aquilo que os poetas sonham: a dor inquestionável. A dor por doer, sem motivo, sem saber bem porquê. Ela o viu ao longe. Pediu um minuto quando se encontraram. Ela esperava. Porque noites sempre esperam. Toda a gente se imobilizou. As águas se imobilizaram. As palmeiras pararam de tremular suas folhas. Aquela terra estranha esfriou e esquentou, sem compasso. Foi um instante. Ele, que ela sonhara ver, ali tão perto. Aquele que busca, igual a ela. A noite pediu um minuto, porque não controlava os tempos dos sóis. Ele concedeu um minuto e se perdeu no fascínio dos olhos dela. Olhos perdidos dos apaixonados que miram a lua cheia. Olhos da esfinge amarfanhada pelas mantas do destino. Ele era o deserto, com sua imensidão, com suas dunas que nunca estão no mesmo lugar. Com seus mistérios e oásis. Seus delírios. Os sonhos dos enlouquecidos por encontrar qualquer coisa. Porque qualquer coisa se encontra num deserto. Basta esperar. Ou a noite o esperar. Juntos, noite e deserto entreolharam-se mil vezes mil. Para ter certeza da junção do universo. Se toda a gente pudesse ver, veria os céus a empurrar aquele encontro, com suas estrelas a beliscar o improvável. O deserto encontrou o vento frio da noite, com seus perfumes almiscarados e seus segredos. Lembrou-se do início dos tempos, agradeceu a dádiva de toda aquela imensidão, perdeu-se mais ainda em suas dunas. Ele podia entender a noite. Ele sabia entendê-la. A noite sentiu suas vestes deslizando por aquelas areias quentes. Sentiu o vapor e as fumaças de seu olhar curioso. Tateou no escuro e se deitou leve e serena naquele corpo de areia. Alargou-se. Sentiu o cuidado dele ao se aproximar em sopros de ventos. Toda a gente abriu um pouco de suas tendas. Pequenas frestas. Para apreciar o encontro dos dois. Mas muito não se via, pois as dunas transmutavam-se numa dança silente. As folhas das árvores se agitaram por um minuto. Um pássaro interrompeu seu voo, quebrou suas asas para não deixar de ver. Para gravar para sempre. A antiga e conhecida serpente nada viu, enroscou-se em sua ignorância e vaidade. Se deixou fascinar por si mesma, por seu longo corpo, esguio e escamento. Não viu a chuva grossa que lavou noite e deserto. Não viu o milagre. Não viu as gotas d’águas, nem a maciez dos grânulos de areia. Não viu as vestes laranja em balouço. Não viu o medo do deserto de perder aquela visão. De perder a alegria da noite e suas loucuras ocultas. A visão do laranja de encontro ao azul, de quase mar. O deserto se achou. A noite se perdeu. O deserto se perdeu. A noite se achou. Por apenas um minuto: o tempo que se gasta para se entenderem amantes.

terça-feira, 11 de maio de 2010

O Enterro - Parte III - Final

    

     Um barulho de vozes surge ao longe. Um alvoroço. Ana Marta caminha de volta ao velório. Encontra as pessoas agitadas. O enterro seria adiado para mais tarde, ou talvez, o dia seguinte. É que a tia da morta, que vinha para o velório, morrera, no banco de trás do carro. Tombou a cabeça para o lado e quietou e ninguém pôs fé. Por certo, estaria cochilando, mas quando chegaram no cemitério, o parente sentado ao lado, desconfiou daquele corpo inerte, parecendo não respirar. Morrera a velha a caminho da morte da outra. Haveria com certeza de ser enterrada junto com a sobrinha, já que não havia outro mausoléu e as duas eram inseparáveis. Haveriam sim de enterrá-las juntas. A primeira que esperasse como sempre fez, pela outra, lenta, gorda e imprecisa. Porque a tia imprecisa até para morrer, não se casou, não teve filhos, não amou, não trabalhou, não estudou. Apenas penteou os cabelos. Os longos e negros e sedosos cabelos diante da enorme penteadeira de jacarandá. Penteou os cabelos e se admirou. Admirou os belos olhos violeta, a cútis de porcelana. Não viu a vida pela janela. Viu a vida pelo espelho do quarto ao longo de sua infância e juventude. Depois, quando as rugas chegaram e tomaram conta de toda aquela beleza, quando os cabelos caíram revelando-lhe a triste careca, ela tapou o antigo espelho com lençóis rasgados e se virou para o mundo. Virada para o mundo, catou doenças em si mesma e jogou seu ódio na cara dos mais próximos. Jogou principalmente na cara da sobrinha a sua careca, o seu dedo torto que o médico entortara e que lhe deixou impossibilitada de trabalhar, suas pernas trêmulas, seus passos inseguros. Passara muito tempo sentada e apenas lhe restou deitar. Deitar e reclamar. E a sobrinha corria em volta numa constante romaria a clínicas, especialistas e benzedeiras. E não havia enfermeira no mundo que quisesse ficar com ela. E não havia dinheiro que pagasse. Mas a sobrinha agora morta fizera de graça. Fez por toda a vida porque aquela ninguém queria, nem os padres. Porque a velha gostava de ir aos padres se confessar. Não que tivesse pecados, nada disso, apenas cumpria um ritual. Contava a eles o que bem lhe convinha, o que lhe viesse à cabeça. Porque sentia prazer em inventar histórias, delatar o que considerava pequenos crimes dos parentes, falar de torpezas e de fornicações. Gostava do prazer de sentir palavras chulas saindo-lhe da boca. E de pedir perdão pelo mau uso da palavra, “seu padre”. Imaginava e falava. Como fazia diante do espelho.
     Ana Marta pegou o celular e ligou para o marido. Contou a novidade. Não sabia se voltava para casa ou se ficava na cidade até o final dos velórios. O marido riu da situação. A velha havia sido esperta. Tratou de morrer antes que fosse tarde demais. A velha não combinava mesmo com a única irmã que lhe sobrara e que agora chorava a perda da sua filha, seu braço direito. As sobrinhas-netas com certeza a trancariam num asilo. Melhor morrer. Melhor partir junto com a outra, pegar carona. E o que havia sido a vida daquela mulher a não ser uma eterna carona no dia a dia do outro? Nova, andava pela casa a passos de gato para flagrar alguma cena, alguma conversa, algum ato que lhe pudesse render frutos. Vivia de bisbilhotices, do sucesso ou insucesso dos parentes e amigos. Principalmente dos malogros. Não despertou sequer ódio, apenas desprezo e indiferença. Apenas a sobrinha lhe dava assistência e um certo carinho, o tanto que a tia permitia. A velha havia se esmerado para o enterro. Fez as unhas e colocou rolos nos ralos e raros fios de cabelo que lhe sobravam. Escolheu roupa de ir à igreja e passou perfume de alfazema. Tinha um sentimento de que, quando se morre, deve-se estar assim: arrumada, com batom e tudo. Roupa de baixo nova, principalmente. Passou a vida verificando o estado dos mortos em seus caixões. Às vezes, tinha ímpetos de passar um batom na defunta, não por compaixão ou delicadeza, mas por achar um desaforo morrer sem vaidade. Naquele dia, ela caprichou! Não que pensasse em morrer, não queria, mas havia um sentimento a lhe rondar o coração... seria um mosquito de pensamento a pousar-lhe nas ideias, seria o sentimento de que o tempo se esgotara, seria saudade da mãe e do pai que há muito já haviam partido. Bem que gostaria de revê-los. E rever também as irmãs também já mortas. O que estaria toda aquela gente fazendo?
     Voltaram com o corpo da velha tia para trás. Tratar da burocracia, comprar caixão, encomendar flores e levar a mãe da prima morta para casa, para tomar um banho, um café e descansar para o próximo velório e para, mais tarde, enterrar as duas. Uma com cinquenta anos, a outra com oitenta e quatro. A primeira viveu cada dia como se fosse aquele o último; a segunda viveu a vida como se tivesse a eternidade toda para viver – um cágado. Estéril e seco. A primeira forçou cores fortes e alegres no cenário que se estendia ano após ano à sua frente; a segunda cobrou dos outros a coloração da vida. A primeira se deu. A segunda usurpou. E agora as duas seriam lançadas juntas num mesmo tempo na mesma terra. Mas dentre os afazeres a se cumprir não havia a necessidade de avisar ninguém. Quem estava lá para o velório da primeira, voltaria para o enterro e a segunda ganharia plateia cheia. Sorte dela, que se morresse sozinha teria meia dúzia de gente a lhe velar o corpo. Não haveriam de questionar da morte o tempo exato, se foi na hora ou não. A velha havia sido para eles apenas um vaso de planta, daquelas que precisam de pouca água, pouco adubo, pouco sol, pouca sombra. E assim era arredada um pouco mais pra lá ou um pouco mais para cá. O importante era movimentá-la ou acomodá-la, antes que criasse mais pragas em seu corpo. Porque o seu tempo de flor bela e majestosa havia passado e naquele tempo ela se poupava de sentimentos de amor, carinho e fraternidade. Ou melhor, ela não sabia muito bem o que era aquilo. Ela só conhecia o espelho, a escova de cerdas macias e aquela beleza a endoidar a si mesma. Para ela o mundo todo viria a seus pés, atrás de seu esplendor, de seus olhos violeta emoldurados por cílios negros. Ela nunca soube a hora que parou de ter aquela certeza tamanha, já que sequer movimentou um dedo atrás da vida, até o dia em que viu outro ser diante do espelho. E estranhou, mas também não fez alarde. Se nada aconteceu, não foi por culpa dela. Ela estava sempre lá: linda, pura e formosa. O mundo é que não se moveu ao seu encontro. E assim ela ficou, quase que sentada. Numa posição para muitos bastante incômoda, “quase sentada”, encurvada, prestes a se sentar. Para ela, Pola, estava tudo muito bom, ganhara sem esforço um apartamento para morar, uma renda fixa que pagaria seus poucos gastos até à morte, uma sobrinha para lhe carregar, sobrinhos para lhe contar suas aventuras sexuais, noras emprestadas para lançar-lhe olhares de compaixão, enfermeiras que não ficavam dois meses ao seu lado e padres um pouco pacientes. Da janela do seu apartamento, no centro da cidade, via casais nus fazendo sexo oral em suas camas perfiladas diretamente em direção às janelas abertas; via mulheres nuas se beijando nas sacadas de seus apartamentos, via mendigos mijando nos muros e postes, putas a balançar os peitos para futuros fregueses. Via a imundície do mundo. Que ela odiava, mas que olhava, por costume, para contar para o padre. Aquilo nem lhe dava comichões, apenas assanhava a língua. O bom era a besteira falada. O bom era saber que atiçava o padre. O bom era saber que também escandalizava o padre. E também as enfermeiras, a irmã, a sobrinha, quem fosse visitá-la.
     As filhas da morta não esperavam por aquilo. Como é que aquela velha chata tivera coragem de estragar o enterro da mãe! Como é que podia ser tão imprecisa! Aquela não era hora de morrer. Teriam que lhe prestar honras e fazer a alma da mãe esperar. Como se a mãe ali estivesse, como sempre a acompanhá-las, como sempre a olhá-las com aqueles olhos amorosos, maiores que o mundo. Não sabiam que a mãe há muito partira. Que largara as velhas vestes e trocara de perfume. Agora, seria flores e seriam outros vales, mesmo que de longe as visse e sofresse ou se alegrasse. Mesmo que se escurecesse numa tristeza sem fim ou vagasse em linhos brancos. Mesmo que clamassem por ela. Agora ela ia. E ia sozinha. E não esperaria pelo cágado.
     Ana Marta tirou da bolsa as chaves do carro. Balançou-as nas mãos. Passou pelas filhas da morta, pelo irmão da morta, pelos inúmeros convidados. Alcançou a portaria do cemitério e se foi.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Enterro - Parte II



     Ana Marta foi ao funeral da prima. Jurou a si mesma que não acompanharia o enterro. Não lhe vinha bem a ideia de um corpo dentro de uma caixa, lançado ao fundo de um enorme buraco em que se verteria terra e mais terra e flores e lágrimas e depois tudo muito bem espalmado, apertado, sufocado, para sempre encravado no solo, no escuro do mundo sem ar. Ana Marta preferia ver cinzas voando pelos ares e olhos dirigidos ao alto, ao infinito, junto aos ventos e pássaros. A prima ficaria apenas para o velório de horas. Daquelas horas que ela sabia bem, não passavam nunca. Não que não quisesse estar ali prestando sua última homenagem à prima. Queria sim estar ali, e ali ficaria pelo tempo que fosse pela pessoa que um dia aquela morta foi.
     Desceu do carro e também deu passos que pareciam não progredir. Lembrou-se das outras mortes pelas quais chorou. Lembrou-se que era sempre assim: passos sem força. Como se o caminhar não rendesse. Viu grupos de pessoas, sentadas, em pé, encostadas, paradas, que falavam, que calavam, que choravam e riam. Viu gente andando só. Sentiu um incômodo na garganta, sensação de ar que entra pelas narinas gelado e rápido e que desce para a garganta ardendo. Como se tivesse corrido um pouco. Passou de cabeça baixa, não queria cumprimentar ninguém. A homenagem ela prestava somente à morta. Aquela não era a parentela dos seus sonhos. Estava ali por causa da morta e da mãe da morta.
     Primeiro viu a velha, de cabelinho branco, muito digna em um vestido também branco com flores cinzas, um xale nos ombros e pó de arroz no rosto sem marcas de lágrimas. Uma mulher em gris. Morna. Impermeável. Diferente de toda a gente que em volta perambulava: colorida ou negra com seus óculos escuros. A velha não precisava de óculos, não tinha nada a esconder, nem nada a revelar. Apenas, às vezes, sentia um pouco de raiva, uma impaciência. Confessara à sobrinha, um pouco mais tarde, quando puderam trocar confidências rápidas e sussurradas, não suportava aqueles apertos fortes na cabeça, pois sim, com as duas mãos apertavam seu crânio e diziam que o sofrimento era mesmo enorme, que grande tragédia!, que grande tristeza!, uma perda irreparável... e a senhora, como está? está boazinha? está suportando?está se sentindo bem? está se sentindo mal? precisa de alguma coisa? " E desgrenham a minha cabeleira que custei a pôr nos moldes e olha Ana, meu cabelo está penteado? ". Sentada numa cadeira próxima ao ataúde parecia alheia à morte ou quem sabe travando a luta do quem pode mais.
     Depois viu o caixão com uma foto em cima. Um terço. Um buquê de orquídeas brancas. Por todos os lados medalhões da vida para a morte. Brancos. Amarelos. Última homenagem de quem ficou para continuar a vida a quem se foi e deixou um enorme vazio. Ana Marta cumprimentou em silêncio a prima que não se podia ver. Tentou umas Ave-Marias, um Pai Nosso, não conseguiu, se perdia desconcentrada na oração. Ia pensando em outras coisas enquanto rezava uma reza em pedaços e se perdia nela, então desistiu. Preferiu por fim pedir aos céus que o espírito dela ficasse em paz e agradecia a docilidade constantemente destilada a todos e, principalmente, a ela. Melhor não poder ver morto o rosto, melhor assim, ficaria na memória apenas a moça sorridente, de fala mansa e andar de garça. Sentiu novamente o ar frio pelas narinas. Os mortos passados rondaram-lhe às costas, arrepiou-se toda, sentiu as costelas se dilatarem dentro do peito, dando espaço ao volume de ar que crescia por dentro, golfadas internas de ar sem saída a esquentar o pescoço, subir pelo nariz, um ardor. Pensou na possibilidade de chorar ali todas as mortes já choradas e curadas, mas deteve-se. Não queria lágrimas. Não queria sentir muito. Melhor matar na raiz. Distrair o pensamento.
     Voltou-se para a tia encolhida, sentada na cadeira, calada, como todas as outras mães que se encolhem diante dos filhos mortos, feito galinha que choca o ovo, mas que não vai chocar, mas choca assim mesmo. Por que é sempre assim, meu Deus, que as mães ficam? Encolhidas dentro delas mesmas, os braços enlaçando o ventre. Respiração lenta, guardada; entrecortada. Gestos paralisados. Olhos que quando vagam, vagam lentos, passivos. Dali do lado do caixão, mães que perdem filho não se levantam para nada, nem para fazer xixi. Nem para o Papa. Todas assim, grande galinha pequena e encurvada a esperar o tempo certo, solitário e longo, eterno? para lamber a ferida. Silêncio de mudo cortado pela educação que ainda ficou: “muito obrigada por você ter vindo”. Porque não há por que chorar, não há por que falar. Apenas não se crê. Não pode ser verdade. História inverossímil! Minha filha morta, oras! Minha filha morta? Como? Possível ela estar ali dentro?, talvez não. Não vi o corpo, não me deixaram ver. Caixão lacrado. Melhor assim. Como é que ela era mesmo? Posso vê-la agora: rosto belo de olhos escuros grandes a falar e a rir, a rir das mazelas, das tristezas; cabelo escovado, na altura dos ombros que voavam cheirosos de perfume bom e aquele tique nervoso de enrugar o nariz ao rir... ah! mas ela ri e fala o que não posso ouvir, mas se mexe e me olha e está viva.
     A sobrinha debruça-se sobre a tia e num abraço rápido diz que foi um susto, que não esperava, que era uma grande tristeza, que gostava muito dela, que a família não pôde vir, que pessoas tão boas não podiam morrer tão cedo e se vai. Vai respirar lá fora para se recompor, alinhar os pensamentos e se depara com um dos irmãos da prima morta. Ele abre um enorme abraço, vem com os olhos em lágrimas, um homem enorme e bonito que se acabrunha diante da desgraça e se torna pequeno e Ana Marta se abre e recebe e dá o abraço. E o sentido ou não da morte com a emoção – que não dá muito para disfarçar, esnobar, dizer que não se está nem aí para tudo isso - a fazem mudar de ideia e passa então a cumprimentar um ou outro que vê, com quem um dia trocou algumas palavras, alguns sorrisos, que se encontrou em festas, nos batizados, casamentos e pela vida afora. Só não cumprimentou as filhas da morta porque a morte não é licenciatura para a hipocrisia. Bem que as viu. Viram-se. E como que num pacto mantiveram-se à distância. Não se cumprimentavam pelos caminhos da vida que cruzavam. Quando meninas se diziam “oi” pela simples obrigação de terem se visto. E era sempre ela, Ana Marta quem saia para o encontro dos “ois”. Agora estavam elas ali e por instantes se olharam e Ana Marta sentiu um gostinho de felicidade. Que bom vê-las, as eternas meninas com seus cabelos longos, tênis e jeans, eternas adolescentes em corpos de mulheres que há muito passaram dos trinta anos. As gloriosas promessas apenas gente com cara de gente. E onde estaria todo aquele glamour, narizes empinados e olhares desdenhosos? A mãe pagara caro, mas dera a elas a vida na sociedade que teve, mas que considerou pouco. Queria mais: queria caras em jornais, festas, casamentos ricos e postura de poder. A primeira rebenta se chamou Laís, cópia de uma representante da sociedade belo-horizontina. A mãe e a avó queriam para elas banhos em espumantes, cargos de destaque e muitas e muitas viagens internacionais. Custasse o que custasse. E as meninas, as três filhas, acreditaram. Acreditaram que o dinheiro e o glamour lhes dariam a glória. A glória não deram. Mas tomaram. Tomaram aquele velho sentimento de gente, de que também sento na privada e tenho cólicas. De gente que sabe que acabamos, muito antes do dinheiro, que morremos todo dia até o dia final e nossos corpos mortos são lavados por eficientes mangueiras num ladrilho gelado e não em banheiras de espuma. Que se preciso for nos quebram. Nos quebram pernas, braços, o que for preciso para que nos enfiem nos caixões. Depois nos passam pó de arroz , carmim nas maçãs e lábios para dar um ar de defunto saudável. Agora Ana Marta via as meninas tristes em corpos velhos com as bundas que cresceram e caíram. A prima do interior, da casa das teias de aranha as via e se lembrava dos “ois” não devolvidos e de rostos que se viravam para ver mais longe, mais adiante e não aquele ser desprovido dos ares metropolitanos. Logo agora que choravam copiosamente... maldade? Não, pensava Ana Marta, hoje principalmente hoje ela viraria o rosto para elas, em direção a elas e não moveria sequer um músculo: não vim aqui prestigiar vocês, apenas a morta. Por que não? Viram isso quando as olhei e não me movi ao grande e fraterno abraço? Não lhes fiz festa? Não lhes dei novamente a coroa da importância? Não as fiz rainha? Sim, prima cor bege também sabe ser de uma elegância fina, coisas de quem aprendeu a esperar – coisas da roça, finuras. Baixeza de espírito, Ana Marta. Alma não afortunada, Ana Marta. Escória! Sim, a prima do interior não perderia o gostinho, por nada. E eu me rio de seus olhares tristes “viu o que me aconteceu?” e eu me rio de suas lágrimas que jorram. E dos brados altos “mãezinha, mãezinha, por que você me deixou?”, os mesmos gritos que sua avó, a grande galinha sentada e encurvada, também soltou nos buraco-cachorro da vida em que morou quando enterrou sua bisavó, lá onde Judas perdeu as botas. Porque da roça também viera e trazia sua mãe que hoje deita em paz, para se casar com um jovem rapaz de família de bem – e de bens – que com ela se deitara e a deixara envergonhada e disposta a com ele ir até o final dos dias, pelo hímen perdido antes da hora. Melhor momento, quando a prima pudesse ser absoluta, não haveria para Ana, é claro. Viram? Eu vim. Estou aqui em respeito à morte, que vejam vocês. Pequenez de alma, com certeza. Que se dane o mundo. Quando é que poderia exercitar sua vil baixeza d’alma? Numa festa? Nunca. Não surtiria efeito. Num almoço de família? Seriam chiliques de uma mulher em período pré-menstrual ou pior: coisas de gente roceira. Melhor hora e lugar: hora da morte que reina única, assombrando os vivos, rindo-se prazerosamente, brincando de esconde-esconde. Quem será o próximo? Com medo, crianças? Discutindo sobre mim. Se venho na hora ou tarde... Encostada nas paredes brancas eu os vejo a destilar venenos contra a morta, contra os vivos e posso com minha roupagem branca, branca em neve, ouvir seus segredos, sussurrar em seus ouvidos minhas proezas... e vocês que se encostam em mim! Ah!, vocês se encostam em mim e nem sabem. Porque sou silêncio. Sou o momento do boom. O hiato. Eu estou aqui, estou ali, nas paredes, sub-reptício. Sou mulher? Feminino? Posso ser masculino. Posso ser ele que os vê de sua enorme altura e beleza, moreno e atraente a chamá-los com minhas vestes negras. Não importa. Sou eu. Sou o som que vem. Sou de toda cor. Sou cor da luz: renascimento. E todos virão a mim. Não sei a hora de cada um, mas sei que venho e venho em tempo certo, ou, prematuramente, que pena, quando vocês humanos exercitam seus livres-poderes, livres–arbítrios. Que venho, sempre venho. E os ouço agora, tão sérios diagnosticando sobre a morta: “Foi antes ou foi depois da hora?” Não sei da hora, mas sei chegar com ela, e venho sempre apesar das rezas, das encruzilhadas, dos corpos fechados, em sistemáticas benzeduras. Sou aquela que ou aquele que renova que transpira por vida nova, pois a vida antiga esgotou-se. E os pego e os prendo e os levo. Para sempre meus? Não. Apenas os levo e os entrego: ao Grande. Ao Absoluto.
     Ana Marta caminha até a lanchonete do cemitério para tomar um café. Pensa no quão é diferente a vida que leva no interior. Na terra dela, o velório é a oportunidade de comemorar a vida. A vida que se foi e a vida que ainda se tem. Tudo vida. Até a morte que não passa de vida às avessas. E nessa comemoração se juntam as pessoas em volta do morto e servidos são café, pão-de-queijo, cachaça e linguiça. Maneira de passar as horas que se penduram no dia triste. Maneira de continuar vivendo e contando casos e colocando assuntos em dia. Que o filho da dona Cotinha surgiu na cidade com mulher nova, e com ela montou casa apesar da legítima que finge nada ver, mas que sabe e se corrói por dentro e por garantia vai ao terreiro de macumba. Que dona Rosinha perdeu o marido numa enchente, mas se embeleza sempre, todos os dias, a esperar marido novo, enquanto carrega na bolsa um velho sabugo de milho. Que a moça que faz linguiças para vender tem o vestido puído e manchado debaixo do braço, porque enquanto prepara a carne, coça as axilas. Ana Marta ri.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

O Enterro - Parte I

                                                      
                                                                O Enterro
                                                  

                                                    Suzana Costa Guimarães


     O corpo chegaria no voo das 11h 30min, no aeroporto de Confins. As filhas foram receber o ataúde lacrado e que não poderia ser aberto, pois vinha de país estrangeiro. Em silêncio foram até o aeroporto. A filha mais velha caminhava, mas parecia que não chegava, não ia, como se as pernas as enganasse enquanto percorria os longos trechos de corredores atrás do esquife da mãe. De longe viu a irmã que morava no exterior, em pé, ao lado do marido. Vestia calça jeans e um casaco preto por cima de uma camisa também preta. Trazia nas mãos um terço. Ao lado deles, o caixão. A filha caçula ao lado da mais velha mascava chicletes de caixinha. Pegava dois, jogava-os na boca, mastigava-os violentamente, cuspia-os na mão que se enfiava no bolso do casaco e novamente jogava mais dois na boca.
     Foi um tempo longo até o cemitério. As moças permaneciam caladas. Tudo já havia sido exaustivamente falado e gritado e sussurrado nos telefonemas. Não havia mais nada a dizer. Carregavam o corpo da mãe em direção ao túmulo, silenciosamente, com os braços doídos da dor da perda. Carregaram o corpo antes. Antes dos homens de braços fortes. Não diziam uma só palavra. A filha mais nova já não mais mascava suas borrachas ácidas, apenas lia um livrinho de salmos. A mais velha ora espiava as ruas apinhadas de gente, ora deitava a cabeça no encosto do banco do carro e de olhos fechados, parecia meditar. A filha, mulher do italiano, não dava um pio. Apertava as bolinhas do terço, mas não rezava. Não sabia rezar. Pensava na mãe rindo com ela pelas ruas de Santiago. Do medo de descer aquela ladeira e ver os pés de ambas fincados nas sandálias, com os dedos, todos os dedos arreganhados e agarrados nos calçados: dedos de macacos, tentavam falar em risos de lágrimas. Na tagarelice da mãe, que perdia o rumo, que trocava nomes de pessoas, que para chamá-la primeiro dizia os nomes das outras filhas, da irmã, da mãe, da avó e da vizinha. Pensava na mãe com dor. Pois não havia mais a mãe. Não havia mais aquele sorriso de dentes perfeitos. Perdera uma amiga. Perdera uma parte do seu corpo, ou de sua alma, de uma forma repentina e ela sabia que o pedaço fazia falta, mas onde ficava mesmo esse pedaço? Nela toda? Oculto? Revelado na carência do eterno diálogo que se rompera? Porque ela tinha necessidade física da mãe e por isso insistira tanto em sua ida à nova terra. Porque quando viu a mãe morta se viu seca e sem brilho. Sentiu fraqueza. Um corpo se esvaindo, leve da dor. Perene. Não gritou. Não falou. Foi o seu momento de silêncio. Ela cobrava do mundo aquela cena. Aquele martírio. Não se pode tocar gente amada morta porque é impossível ser verdade, mas o rosto inerte, sem voz, sem olho com brilho, sem vida, diz que sim, que acabou, mas não acabou. Tem que continuar. Vai continuar, mas é difícil e aí ela grita, se arranca dela e de si mesma, quer esganar o mundo. Torcê-lo. Quer arremessar bolas de barro no muro. Quer abrir o peito com unhas e arrancar sua dor. Mas sua dor não sai. Ficou. Eternizou-se.
     O genro sentia muito, gostava da sogra. Apreciou a ida daquela mulher educada e elegante à sua casa e lhe dera um anel de ouro branco incrustado de brilhantes. Sentia também a tristeza da sua jovem mulher com quem se casara há seis meses. Ela chorou o mal repentino da mãe, chorou durante a sequência pavorosa de vômitos e diarreias, chorou os três dias naquele hospital frio, onde as pessoas falavam rápido e baixo coisinhas que ela não entendia em meio a palavras espaçadas e conhecidas por ela, chorou aos berros e gritava: “mãezinha, mãezinha!”. “Tempestivas, amorosas... quentes!”. Assim pensou, raciocinou e levou ao altar aquela mulher morena e bonita, que ele amou desde a primeira cruzada de pernas numa tarde quente em um motel do Rio de Janeiro. Ela, bonita, nova e sedutora. Cabelos negros e longos num rosto caboclo. Ele, apenas um executivo europeu que passara dos quarenta e sofria de feiura e ciúmes. “Mas era muita emoção, talvez se ela se contivesse um pouco”, pensava o homem taciturno e sem pescoço, de beca preta e sapatos plataforma que lhe davam bons centímetros.