Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



terça-feira, 29 de janeiro de 2013

BREVE HIATO

Te procurei. Fui aos escombros, era cedo para mim, tarde para você, era manhã. Amanhã, não mais te buscarei. Mas, ontem, eu fui. Havia muita fumaça, uma lista infindável de dor, meu peito se fechou... eu quis saber, e não foi por vil curiosidade, orgulho ou dor, foi pela antiga doação, tão cúmplice... sincera solidão a dois. Eu te procurei, iria lhe estender uma palma, bem alta, bem alva, bem morna, quase aguada, quase morta, quase nossa, quase viva, permanente, para deixar-te um pouco de mim.

Voltei para casa. Abri as janelas. Sorri. Acendi perfumadas velas, ajeitei as almofadas do sofá, pensei em ti.

Amanhã, leite morno com chocolate, uma vasculhada no armário, o carro na rua, e na rua e na vida, eu de novo.


Por Suzana Guimarães

sábado, 26 de janeiro de 2013

DOCE HOMEM (VI)

(Imagem retirada da Internet)


Palpita a fibra que desliza no vão das minhas pernas, cobertas por teu corpo em chumbo, ah, granita cada feixe, cada músculo, sorri saudosa minha pele desbotada de ti. É tarde cinza, é noite nula nesta tua gula, manhã de febre, palpita, atiça, facilita, vai, facilita doce homem...

Porque sou lamento só, ruína de meus desejos...

A morte que almejo mora neste teu corpo que me lembra madrugada, gargalhadas, leves sonatas, uma aldeia em Praga. Nesse teu corpo queimado, quero a minha marca, um dos meus lábios, meu cheiro, teus olhos fáceis, descendo, subindo, galgando...teus olhos fincados nos meus, lendo a história do caminho do gozo e da fascinação.

Não respire, não respire, alcance a morte comigo, grite comigo, morra em mim.


 "We will die"

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

MEU TOM LILÁS


Eu queria flores lilases em vidros transparentes, dispostos aleatoriamente pela casa... Eu queria alfazema, eu quero a flor lilás, eu quero estar em Açores. Quero o mar, naquele dia em que vi o céu magento, quase noite. Quero toalha de mesa lilás com oliva, uma banheira carmim, e, nela, afogar-me, silenciosamente, só para sentir o prazer de mim. E assim, lavar o âmago que contrai minhas vísceras e faz de mim assim, quase amarga, quase nula, quase respirando.

Eu quero velas lilases, noites em bordô, quero um vestido assim, nessa cor. Quero quarto crescente para quando ele chegar, assim estar, nua d`um vestido púrpura que flutua em flores de enfeitar amor début.

Por Suzana Guimarães

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

TROCO, SÓ A VIDA DÁ




E, aí, moço, puxa o banquinho, senta e chora. 

Tantas teorias, tantas palavras, e eu faço bem mais que você, o dia todo aqui, vendo a paisagem, fumando meu cigarrinho de palha, vendo pessoas por entre as fumaças, que chegam, que vão...

Você estava pesado demais para o teu galho e caiu ou fez onda em cima da onda e o mar o engoliu?

Você não se deitou naquele gramado, verde gramado, céu azul, frio de namorados. Você dispensou o jantar, e, quem sabe, incluso a sobremesa e o licor? Quem sabe... cof...cof...cof... esse cigarro me engasga, ainda me mata. 

Não, não rio. Não rio de você. Rio da vida, engraçada, ela, não é? Você não se deitou naquele gramado, mas ela foi lá, sua rainha adorada amada, e se deitou, só que com outro, não é? Hum... posso sentir, posso até ver, deixa eu abanar um pouco a fumaça: era noite, era tarde, pouco importa, uma garrafa de vinho, um cantinho no escuro, ele toca a perna da moça, diz coisas em seu ouvido - pena, não posso ouvir! - ela ri. O garçom entrega um pedaço de papel, eles se levantam e eu já os vejo no quarto. Ele tira com os dentes a alça da blusa, ela murmura o nome dele, hum... perdi. Não vejo mais. Minhas fumaças andam preguiçosas.

E aí, moço? Gostou? Paga a conta, na saída, com a moça da entrada. 

Ó, não tem troco, não, viu? Troco, só a vida dá.


Por Suzana Guimarães

domingo, 6 de janeiro de 2013

MEU NOTURNO É VOCÊ # 2



Um poeta me disse que somos pouco, escassez, quando ele nos leu, ontem, numa ensolarada manhã, debaixo de vinhas. Ele escreveu também: "tudo no mundo é expectante, sobretudo, nas vinhas, que se embriagam antes de nos embriagar."

Eu, que queria ser poeta, bailarina, amante do rei, eu, que pouco consigo além de minhas palavras, que junto, remendo, podo, corto e desprezo e amo, e também faço desprezar e odiar, não tenho nem as vinhas para um pouco do cheiro delirar, o repouso do guerreiro, a Lua dos amantes, a instabilidade do cigano e não provei as delícias do paraíso para poder lhe dizer, ' venha'.

O poeta sabe de nós e ele nunca nos viu. Psiu! Faça segredo. Já não somos dois, somos três a saber do nosso pouco. Sim, deixo-lhe em dor? Somos pouco, pouco, um fiapo de pano voando ao vento, um casal de pássaros que perdeu o ninho e, destroçado, não aceita outro... Ninho? Nós já tivemos ninho? Nós nunca fomos pássaros (apesar de nossos voos), nunca fomos um casal (apenas encontro) e jamais nos aninhamos (apenas nos tocamos, aninhar é amar). Foi tudo efêmero, enganosa embriaguez, igual à das vinhas, nós, mortos na expectativa.

As areias da praia nunca ouviram falar de nós,  nem as chuvas fortes (aqui, nem chove!), e as vinhas nunca saberão porque viramos ostras.

Prefiro a ostra ao pouco. Não faremos um mosaico:
Hoje, a gente ri. Amanhã, você nem me vê.
Hoje, eu fecho a cara. Amanhã, você puxa conversa.
Hoje, você estende a mão, amanhã, não!

Eu andei muito, venho andando há tanto tempo, sou a anciã mais velha, a primeira ossada dos elefantes, um mapa que nem mais existe. Sou dentro de mim, uma estrada sem fim, que só incomoda,  só incomoda... não caibo em pouco, não o quero pouco, quero-o todo, corpo, alma, pele e coração.

Beba então, cálice após cálice, noite após noites, infernais anos, beba o único bem que possuo além da nossa oculta memória. Beba o som noturno que a minha palavra faz em você.



Por Suzana Guimarães