Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



terça-feira, 31 de agosto de 2010

DOS PRESENTES QUE GANHEI

                                                          

Quando aqui cheguei, larguei o passado e desisti de pensar no futuro, enquanto desembrulhava os meus presentes. Ganhei vários. O primeiro que abri: uma caixa que crescia com o tempo, se enchia de pequeninas pessoas, todas apertadas dentro dela, mas com ventos refrescantes que ora sopravam a minha cara, ora as delas. Pessoas pequeninas, pequeninas pessoas enormes - bastava alçá-las de dentro para vê-las melhor - que usavam o mesmo sapato que eu, a mesma roupa, o mesmo chapéu e gostavam de coisas consideradas tolas, olhar estrelas, pisar na grama, ver Sol nascer e se pôr, comer algodão- doce.

Depois, abri o segundo presente: palavras, palavras. Palavras vindas de uma gente que não economiza, que perde tempo juntando letras e lendo entrelinhas. Alguns dizem nada entender, mas entendem sim, eu sei. Palavras condensadas na lata do meu computador. Eu passei então a abri-lo sempre, para passar o dedo e levar o leite doce à boca. Creio que engordei.

Aí, perdi a ordem na lista de chegada. Perdi a mim mesma, numa perda prazerosa (descobri que perder pode às vezes ser muito bom).

Ganhei carinhos, afagos na alma e no coração, vinham também dentro de latas. Bastava apenas abrir a primeira, a que cabia a mim, a que esperava esforço meu.

Enviaram-me um saquinho transparente lotado de joaninhas vermelhas. E também uma veste, amarela, da cor do ouro do meu país, da cor dos canários do meu país. A veste não faltou, nem sobrou. Enviaram-me areias, muitas, em folhas finas de papéis, mais bonitas que as do deserto onde moro (me desculpa, minha segunda pátria!). E também disco. A moça cantou, cantou o dia inteiro.

Enviaram-me beijos, abraços... eu agarrei todos, no ar. Pulava e pegava-os, me divertindo, pois, muitos vinham dentro de saquinhos de risos. Ganhei sapatos altíssimos. Fiquei tão desorientada com a surpresa do mimo, que calcei pés trocados para a fotografia.

Deram-me um gato, com dedicatória pendurada no pescoço, negro, de olhos amarelos. O gatinho chegou ensinado, sabia arranhar meu nome LILY. Junto com ele, enviaram-me uma lágrima que parecia um orvalho e poema de alguém famoso.

Eu ganhei espaços nas casas dos amigos, homenagens eternas. Recebi selos, estampilhas, poemas. Recebi uma joaninha especial, veio no dedo de uma moça de um lugar distante e frio, mas apenas o lugar é frio, pois seus habitantes são esquentados feito fogão em dia de festa.

Eu ganhei pedidos de desculpas desnecessários - nós todos não bebemos água, ingerimos sentimentos - e ganhei algumas músicas para embalar as minha horas.

Ganhei paz e frenesi. Ganhei presentes. Ganhei um espaço maior na minha memória. Ganhei de uma vez só tudo aquilo que mendiguei por dias, meses... anos, anos, anos que passaram duros. Ganhei amor em almofada de seda.

Enviaram-me a mim mesma.

domingo, 29 de agosto de 2010

ACONTECEU NO CARNAVAL



Suzana C. Guimarães


Uma cidade fora do mapa. Carnaval. Três ruas, uma avenida, uma pousada. Ou melhor, uma pensão. Ovo frito em cima do arroz, opcional. Televisão em preto e branco com tela verde, plástica, para dar cor. Um único quarto disponível. Um grupo perdido de onze, viajando sem destino. Um quarto cujas janelas davam para a única avenida. Dez camas estreitas.

Assim começa a história. Ou termina. Ele e ela se conheciam há anos. Encontravam-se esporadicamente em reuniões de trabalho. Cada um com a sua vida e a vida de cada um muito mal desenhada. Esboços de tentativas. Nada de concreto. Um queria o outro, mas não admitiam. Às vezes, uma encostada mal passada em corredores estreitos, abraços mais apertados. Às vezes, alguns sustos, olhos que se viravam para trás para ver outros olhos fixos. Olhos, olhos, olhos, sempre os olhos. Diziam sempre mais que a boca. Uma certa relutância. Uma certa implicância. Um perguntava pelo outro. Um queria saber do outro. E mais nada.

Até que o grupo decidiu viajar, sem rumo, sem antecedências. Foi tudo num imprevisto que os dois se viram naquele quarto com mais nove. Havia alguns varais de cortina de chita tentando separar camas. Havia muito barulho na avenida, gente bêbada voltando para casa. Cada um, uma fantasia. Cada fantasia, um corpo desfalecido de álcool. No quarto, silêncio. Foram chegando aos poucos, ora três, ora quatro. Já era madrugada. Ela chegou pensando ser a última. Sentou-se na beira da cama, pensou em tirar a roupa que colava do pescoço às canelas. Maluquices! Desistiu quando viu ele, o último, abrindo a porta, devagar, enfiando a cara para dentro do quarto e dizendo olá baixinho. O tempo correu lento a partir de então. Pela primeira vez, quase sozinhos, em tantos anos. Não havia cama para ele, apenas um colchão no chão. Colchão fino, de espuma. Ele se sentou na beira da cama dela. Olhou as horas no relógio da parede, vinha luz pelas frestas das janelas. Havia silêncio e três barulhos: um ronco em uníssono, a respiração dela, a respiração dele. Ele colocou as mãos entre a cabeça, os cotovelos nas pernas e olhou para o chão. Pensou em seda, casulo, triângulo, rota, crisálida, sonho, sentiu calor e olhou para ela. Cansada, desgastada das andanças pediu colo. Começava ali a história das impossibilidades possíveis. Com certeza, apenas colo, cafuné nos cabelos. Ele a puxou e deu colo. Olhou o relógio, mais uma hora rodada pelos ponteiros. Ela se aninhou mais no peito dele. Ele, encostado na parede, pensava para trás - histórias mal resolvidas. Tempo engolindo velhos tempos. Passava a mão com calma nos cabelos dela. Ela murmurou, disse ter descido meia ladeira e confessou se sentir bem. Foi o mote. Foi o bote. Quando viu já estava no chão, a cama rangia, molas velhas. Ela não viu o movimento. Pensava para trás - histórias mal resolvidas. Tempo engolindo velhos tempos. Ele sentia calor, pediu para tirar a camisa, ela olhou em volta, claro que não, olhava-o nos olhos. Ele não queria saber, estava ardendo, dois maços de cigarro não resolveriam a questão. Ela empurrou o corpo dele com o pé, então tira. Ele tirou tudo. O grupo dormindo. Cortinas trapos quase transparentes que nada tampavam. Ela, agarrada à malha colante. Nem mexia. Ele procurava pele, ela ria e falava. Ele cochichava, implorava silêncio, ela ria. Quanto mais ele procurava pele com os dedos, mais ela ria, aquilo era ridículo demais. Pensavam os dois para trás - histórias mal resolvidas. Tempo engolindo velhos tempos. A boca dele, beijos surrealistas. Tocavam abertas, secas, engolindo o rosto dela, o tempo que se perdeu para trás. Agora, a realidade no colchão de uma velha pousada. Alguém mexia na cama. Silêncio. Paralisia. Olhos fixos em outros olhos. Respiração suspensa. Um homem nu em cima de uma fantasia de patinadora no gelo com saia de filó. Os paetês da malha piscando, os peitos arfando. E já não sabiam mais, se melhor nas molas velhas, se melhor na espuma fina. Pressa e calmaria. E, por fim, ele a deitou novamente no chão, no colchão puído, a cabeça dela batendo no assoalho. Barulhos, sussurros, risos. Compasso nas pernas. Duas abriam, duas fechavam. O filó subia, o filó descia. Ele agradecia à engenharia a invenção de malhas para ginástica. Fendas estratégicas. Ela pensava em planícies, num cavalo branco galopando nelas. Passou uma cavalaria na avenida. Ele pensava em casulo, na morte. Em jogar fora maços de cigarro. Ela gemia. Desconforto nas costas, doía-lhe as costas. Ele a girava para cima. Implorava silêncio. Ela falava como se não houvesse fantasias desmaiadas. Tão pouca luz, tanta visão. Os ponteiros girando horas. Corpos se mexendo. O vento brincava na porta fechada daquele quarto. Ele nu. Ela deitada ao lado, olhando as luzinhas dos paetês. Olhando o tempo para trás. Olhando um dia clareando. Pensando num tempo engolido por outro que viria.

A dona da pensão fazia café, assava pães. Os cheiros invadiam o quarto. Fantasias ressuscitavam de suas mortes. Dois corpos, um no chão, outro na cama, fingiam dormir. Diziam a si mesmos, igual mantra "fantasia, fantasia...".

Ele pensava na transparência da seda, tão cintilante, tão segredo, tão prisma. Ele pensava em amoras, crisálida... Ele pensava em casulos mergulhados em água quente que mata, que mata a larva do bicho. Do bicho-da-seda.

Ela sentia, sentia.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A MOÇA E OS CRISTAIS

                                    Suzana C. Guimarães

A moça arrumou as taças na prateleira, por ordem de cor. Achou que poderia melhorar. Refez os movimentos e pôs novamente as taças, por ordem de lapidação. Achou que poderia melhorar. Desfez o já feito e escolheu a ordem da mesa: água, vinho tinto, vinho branco. Aflição; embaralhou-se, qual era mesmo a ordem? Desfez e alinhou tudo por valor, de um lado os cristais mais finos, do outro, os outros.

Insatisfeita, empurrou-os para o fundo da prateleira da cristaleira. Trancou a porta.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

UM MINUTO


fotografia, por SCG


                                                                     
                                            Por Suzana Guimarães

Ela pediu um minuto, a noite. Tinha as vestes alaranjadas, daquela cor que se vê ao longe quando o sol se põe. Os cabelos brilhavam do azul de também fim de tarde. Ela emitia os sons distantes do silêncio. Ela era apenas aquilo que os poetas sonham: a dor inquestionável. A dor por doer, sem motivo, sem saber bem por quê. Ela o viu ao longe. Pediu um minuto quando se encontraram. Ela esperava. Porque noites sempre esperam. Toda a gente se imobilizou. As águas se imobilizaram. As palmeiras pararam de tremular suas folhas. Aquela terra estranha esfriou e esquentou, sem compasso. Foi um instante. Ele, que ela sonhara ver, ali tão perto. Aquele que busca, igual a ela. A noite pediu um minuto, porque não controlava os tempos dos sóis. Ele concedeu um minuto e se perdeu no fascínio dos olhos dela. Olhos perdidos dos apaixonados que miram a lua cheia. Olhos da esfinge amarfanhada pelas mantas do destino. Ele era o deserto, com sua imensidão, com suas dunas que nunca estão no mesmo lugar. Com seus mistérios e oásis. Seus delírios. Os sonhos dos enlouquecidos por encontrar qualquer coisa. Porque qualquer coisa se encontra num deserto. Basta esperar. Ou a noite o esperar. Juntos, noite e deserto entreolharam-se mil vezes mil. Para ter certeza da junção do universo. Se toda a gente pudesse ver, veria os céus a empurrar aquele encontro, com suas estrelas a beliscar o improvável. O deserto encontrou o vento frio da noite, com seus perfumes almiscarados e seus segredos. Lembrou-se do início dos tempos, agradeceu a dádiva de toda aquela imensidão, perdeu-se mais ainda em suas dunas. Ele podia entender a noite. Ele sabia entendê-la. A noite sentiu suas vestes deslizando por aquelas areias quentes. Sentiu o vapor e as fumaças de seu olhar curioso. Tateou no escuro e se deitou leve e serena naquele corpo de areia. Alargou-se. Sentiu o cuidado dele ao se aproximar em sopros de ventos. Toda a gente abriu um pouco de suas tendas. Pequenas frestas. Para apreciar o encontro dos dois. Mas muito não se via, pois as dunas transmutavam-se numa dança silente. As folhas das árvores se agitaram por um minuto. Um pássaro interrompeu seu voo, quebrou suas asas para não deixar de ver. Para gravar para sempre. A antiga e conhecida serpente nada viu, enroscou-se em sua ignorância e vaidade. Se deixou fascinar por si mesma, por seu longo corpo, esguio e escamento. Não viu a chuva grossa que lavou noite e deserto. Não viu o milagre. Não viu as gotas d’águas, nem a maciez dos grânulos de areia. Não viu as vestes laranja em balouço. Não viu o medo do deserto de perder aquela visão. De perder a alegria da noite e suas loucuras ocultas. A visão do laranja de encontro ao azul, de quase mar. O deserto se achou. A noite se perdeu. O deserto se perdeu. A noite se achou. Por apenas um minuto: o tempo que se gasta para se entenderem amantes.

Texto republicado. Data da primeira postagem: 26 de maio de 2010. 
Escrevi esse texto em 2006, e naquela época, eu sequer imaginava que poderia vir a morar num deserto. 
Graças a Deus, a Terra gira, a vida gira, o mundo muda. Inclusive nós.
                                                                     Suzana

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

OBS.:

( foto retirada do seguinte endereço: fayerwayer.com.br)




Minhas publicações não acompanham o meu estado de espírito. Nem o meu estado de espírito me acompanha, imagina então os textos.



Por gostar de escrever por entrelinhas, viver por entrelinhas, às vezes, permito-me enviar recados.


Quem não tem pombo-correio, usa a Internet.




Suzana


Nota: mesma publicação, na mesma data, em O Medo De Suzana.



domingo, 22 de agosto de 2010

SOBRE A MORTE


fotografia, por SCG


por Suzana C. Guimarães

Eu me lembro sempre daquele dia, um dia cinco, de um mês três, de um ano terminado em oito. Quando tentei me levantar da cama, pela manhã, senti uma pontada que se estendia das mãos até o ombro e que depois se expandiu para as costas, alojando-se nelas, num ponto acima da altura da cintura. Parecia um mau jeito. Eu não sabia que era a morte que me tocava às costas, vindo me encontrar para o encontro da hora marcada. Mas eu ainda carregava vida nos braços, os tinha ocupados, e, ela, então, não pôde me entregar o manto que trazia. Tentou então colocá-lo nas minhas costas, igual a um agasalho num dia de frio, mas que você sente ser desnecessário, mas deixa. O dia todo foi assim. À noite, a morte foi mais tinhosa, arvorou-se por cima de mim e a pontada cresceu de forma desmesurada. As palavras morriam na minha boca, eu não podia completá-las, porque doía sempre nas tentativas, o suficiente para me fazer calar. Respirar doía. Falar doía. Não uma dor de cabeça ou de cólicas, aquela dor conhecida. Mas, dor desconhecida, um feixe aberto de nervos, talvez, que sofria entalhe a cada ar que entrava, uma faca enfiada várias vezes na carne, puxando para cima e para baixo, cortando no mesmo lugar. Não devia ser permitido a ninguém morrer aos poucos. Toda morte deveria ser de uma vez só. Uma pontada só. Um golpe apenas. Mas você pode ir morrendo aos pouquinhos... e entende que passou a vida toda sem se importar com o ar que entra o tempo todo em você.

É aí que entra o ponto. A parte que mais me atrai. Os poetas dizem que morrer não dói. Alguns escritores dizem que sentir a morte é o mesmo que o mais louco gozo sexual. Sempre penso sobre isso. Ou eles não sentiram a morte, ou eu é que não sei o que é o mais louco gozo sexual, porque da morte, eu sei.

A morte dói. A morte dói porque você percebe que está perdendo. Na morte, o corpo apenas padece de solidão e desinteresse, ou puro desespero, não há vigor, não há o trote do cavalo que suado tenta trocar o passo e se pôr a cavalgar, não antes de passar pela ânsia de saber o momento certo em que trocará o passo, saindo da passada rápida mas ritmada para um desenfrear sem chão, onde o corpo se estende todo para que se solte no cavalgar. Isso é o caminho do gozo.

A morte faz a alma silenciar-se. Quando a alma se cala, você perde as palavras, perde sua identidade. Você perde suas referências. No instante exato, você não tem pai, mãe e filhos. Eu me lembro bem, ansiei por aquele que me buscaria para me levar ao hospital. Se me lembrei de alguém, foi apenas dele. Eu o aguardei na porta da minha casa, sozinha, e eu tinha a visão paralisada no portão por onde o carro chegaria. Enquanto esperava, uma moça tentou se comunicar comigo, ela dizia coisas e eu apenas dizia que não precisava. Eu estava envergada por cima de mim mesma, não podia mais me estender. Lembro-me que a dispensei, ela era uma estranha e eu esperava aquele que chegaria no carro para me carregar. Talvez, quem sabe, quando ele tocasse em mim, eu pudesse receber o manto dela, da morte que aflita tinha pressa. A moça insistiu em ficar, em esperar comigo. Eu nem a via. Eu já havia esquecido do meu mundo, o que seria para mim aquela moça por mais bondade transbordasse dela? Quando o carro chegou, pensei sim, que era só estender os braços e receber a mantilha. Mas, não foi bem assim. Ao invéz de morrer, ganhei mais vida. Talvez fosse a vida daquele que me levava que era tanta a ponto de transbordar e eu lambi o que escorria.

Consegui um pouco mais de ar. Ou melhor, consegui jogar ar para dentro com uma certa habilidade. O truque era respirar pequeno, pouco, devagarinho, soltando pela boca mais devagar ainda. E, nesse processo de me preocupar com movimento tão banal até então, me ocupei de vida, e, por fim cheguei ao Pronto Socorro.

O resto é história. Ou melhor, memória. Volta sempre na tristeza.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

ALTÍSSIMOS


                                
                                 Para Lily & Suzana




Eras tão grande, tão grande
Que todo o meu imenso amor cabia,
Livre e saltitante, aos pés desnudos
De teu pequenino corpo
Solar,
Centro de minucioso universo de cores
E brilhos femininos,
A atrair-me e lançar-me em órbita
Majestosa, jupteriana – a mim,
Justo a mim, indistinto grão
De tua cósmica poeira.


Então, Cinderela, achaste
Aqueles antigos sapatos...
Os tais que em boa hora perderas.
E os malditos, altíssimos
Como deuses,
Recriaram-te, em barro borrado,
Quase do meu tamanhão
Físico, cavalgaduramente físico,
Porém nada, nadinha
Comparável à densa infinidade
De estrelas, cometas e luas
Que agora se faziam, em debandada,
Gélidos, sorumbáticos
Batráquios... alados
Por tua frívola arrogância de somar
Uma pitadinha ou duas, talvez três
De centímetros de não ser.

                                                Texto de Teophanio Lambroso



Tudo começou quando visitei o DS e me deparei com o texto sobre a Carmen Miranda, que achei ótimo. Eu ria o tempo todo, lembrando-me de todo aquele pomar, tantas frutas na cabeça... e aí fui comentar (as respostas aos comentários me fizeram rir mais ainda).

E, ao comentar, me lembrei dos saltos da Carmen, aquela escada que ela subia para poder parecer mais alta. Escrevi ao Teopha que, eu achava uma falta de consideração dela para com ela mesma, querer ser uma coisa que não era. Sou baixinha (o Teopha adorou saber disso), uso salto alto que não chega a ser escada (o Teopha odiou saber disso) apenas porque algumas roupas pedem e também porque acho sexy, mas não os uso nunca para parecer maior. Ele disse que queria escrever sobre isso e dedicaria a mim. Fui lá, li e adorei. O texto dele sobre a Carmen é ótimo, que me perdoem os admiradores dela de plantão.


Obrigada, Teopha, pelo texto, por sempre me fazer rir muito e pelos lindíssimos sapatos que ganhei. Gostei tanto que fiquei sem saber qual escolher para a fotografia, daí usei um pé   de cada.                                                                                              
                       
                                                                       Suzana

 
Venha conhecer o DS (desinformação seletiva), clica no endereço abaixo:
 
http://tucazamagna.blogspot.com/

terça-feira, 17 de agosto de 2010

PELE E ENCAIXE

fotografia, por SCG
                                                   
por Suzana Guimarães.


Ele sempre chegava e dizia "bom-dia!". Pegava a faixa e a amarrava na cintura dela, não sem antes, olhá-la no fundo dos olhos, dar uma parada e logo um aperto um pouco forte para o nó. Ela sentia calor, era quente o quimono. Bem que ele não precisava ajudá-la, mas era prazeroso o ato de ensinar. E ela gostava, não aprendia nunca. Ele apertava a faixa com um leve sorriso. Ele, o sensei, vencia. Naquele dia, ele tocou o braço dela, a mão molhada. Ela agora vencia. Fêmea igual a qualquer outra, deu um leve sorrisinho. Os primeiros golpes em pé. Tudo bem, só contato de pernas. Ela passava as pernas protegidas pela calça nas pernas dele, peludas, ele, de calção. Já havia aquela tensão de se trocarem por ali mesmo. Um dando as costas para o outro. Panos encobrindo panos que saíam. O calor começava ali, para ela e para ele, as mãos molhadas. As dele. Não havia deslizes, ela era boa naquilo. Ela não suava, ela escondia. Só o calor do quimono dificultava. Fêmeas nasceram para o cortejo. Havia satisfação naquela troca. Eles sabiam que finalizar a luta seria fácil. Bom, ela sabia. A mulher sempre soube, é preciso apenas, e é isso o que ela apenas quer, a mulher, constatar a pele e o encaixe. Disso, ele também já sabia - não pensava em fazê-la girar no lustre - quando a levantava nas costas e a derrubava ao chão. Aí, ela perdia, ele ganhava. Ele, o sensei, era obrigado a facilitar, a faixa preta na cintura apontava, então ele deixava o corpo um pouco solto. Um pouco. Eles viam os tracinhos em volta dos olhos de ambos. A pele já brilhava. Ela se contorcia para sair. Da forma que desse. Sentia os seios esmagados, sentia o corpo dele pressionando. Pesavam quase o mesmo peso, tinham quase o mesmo tamanho, mas ele era um feixe de músculos. Retesados. E, ela, fêmea, esfregava-se por baixo dele. Nada demais. Ela tinha que sair. Às vezes, ele, deitado em cima dela, pegava-lhe o rosto com as duas mãos e ensinava. Demorava. Falava manso. Repetia. Olhava-a nos olhos. Ela sentia o peso, mal ouvia. E queria ganhar. Às vezes, era bom ganhar. Às vezes, o prazer estava no perder. E ela, então, voltava a fazer força, empurrando-o para fora. Quanto mais empurrava, mais sabia que ele se deitava e mais ambos sabiam que só se precisa mesmo, só mesmo, a pele e o encaixe. Enquanto perdia, presa, ela sentia a cabeça dele deitada de lado, abaixo dos seios dela, acima do umbigo. O quimono esquentava. Não era água que saía dos poros, era óleo. Às vezes, ele a derrubava e ela caía de mau jeito. Num pulo, ele em cima dela, tentando segurar o que ia bater. Ele, em cima dela, parava o olho nela, queria saber, preocupado, passava a mão na cabeça dela, um carinho. Na maioria das vezes, ele por cima, ela tinha que enlaçá-lo com as pernas, fazer guarda. Abria as pernas e tentava apertar, e tinha que apertar, ele mandava: "aperta, aperta". Podia sentir os músculos dele, todos, sem pular um. Aí, começava a aula. Ele, o sensei, falava próximo ao pescoço dela. Ensinava. Mal tocava nessas horas. Afastava-se um pouco, sem soltá-la, relaxava o corpo. Um pouco. Mas falava. Falava. O tempo passava. O vento parava. Peles grudavam. Ela teria que contar para ganhar. Ela ria. Ela perdia. Ele vencia e ria. Quando voltavam para cima, mais pernas e puxões e pronto, um grito dela, ela no chão. Ele, rápido, caía em cima, mas não pesava. Com o tempo, ele passou a jogá-la mais rápido para o tatame. O grito e pronto. Presa novamente. Ele vencia. Ela passou a vencer também, venciam juntos, pois aquilo já era um visgo. Com o tempo, o quimono dele se abria, a faixa voava. Ela caía, gritava e ria. Ele ria. Já não era luta, era um jogo, uma dança, um quase coito. Às vezes, ele se lembrava, ela era aluna. E ele então pensava em álgebra. Com o tempo, já não eram mais duas peles, era uma. Com o tempo, parecia vício. Com o tempo, só se via um, onde antes eram dois. A bola. Um retângulo. O quadrado.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

VALSA MAL DANÇADA

                                             Suzana Guimarães

Como é que foi mesmo?

Eu vou contar

Era um baile,

Uma valsa mal dançada

Acho que eu estava cansada

Havia pouca luz

Pouca pista

Pouco amor

Um monte de dor.


Como é que foi mesmo?

Já está começando a desbotar...

Era noite

E o baile havia acabado de começar

Eu fiquei tanto tempo sentada

Que me perdi

Já não sabia mais o que estava fazendo ali


Convidaram-me para dançar

Tantos pares

Tantos passos

Tanta gente, tanto em minha mente.

Você apareceu e começamos a ensaiar uma valsa

Os músicos em desarmonia ou seríamos nós?

Eu queria outra dança, outro som, eu queria descer uma cachoeira, numa balsa.

Eu só pensava em águas.

Dançava, ou engolindo seco, ou com o coração sobressaltado

Aquela sensação de que se vai cair ao chão em segundos,

Seus olhos em mim, sentindo quem era eu - ilusão!

Dança de toques, mãos borboletas, sensação de cãibra.

Pensei melhor seria largar aquela valsa mal dançada...


Se me oferecesse,

Se você se preocupasse,

Eu tomaria uma taça do mais puro vinho

Para tentar um bailar mais digno de nós,

Talvez compassado.

Mas você não ofereceu a taça

Você, tão preocupado com os passos.

E eu com a sede.


Como é que foi mesmo?

Já não me lembro mais.

Lembro-me dos olhos, da boca.

Lembro-me da cor das minhas sandálias,

Lembro-me da cor da tua roupa.

Esqueci os passos, esqueci a valsa

Os anos se passaram

Eu não conto mais contos de fadas


Mas a vida não me enfada

Eu vivo do que me agrada

Penso em balsas,

Penso em cartas...

Num encontro que nunca entendi,

Mas me compreendi

E você me deixou legado,

Alguns presentes - intocáveis!

Penso naquelas horas, apenas nas horas.

Nem preciso acordar de sonhos

Vivo acordada todos eles.

Bem melhor agora.



Talvez os músicos ainda estejam lá, nem viram a gente sair

E, pensam, iludidos, que nos tocam.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

COMPOTA DE FRUTA, COMPOTA DE AMOR


                                                                   por Suzana Guimarães

Deve ser mal de família.
Meu irmão sempre gostou de compotas
De manga, pêssego, goiaba...
Eu sempre comi a cor
Amarelo vivo, laranja terra.
Gosto doce,
Nunca me agradou.

Deve ser mal de família,
Minha mãe, tão doce
Meu pai, tão limão.
Precisava do meu pai para ser doce,
Mas ser limão,
Não é de todo ruim
Faz a gente, pelo menos,
Aprender a fazer compotas

Compotas de amor.

A gente pega pedaços da fruta
Tão tenras, tão cor
Bota tudo na compota
Aperta bem, espreme,
Depois, lacra.

Deve ser mal de família,

Aprendi a fazer arte.
A gente pega a compota
Já tão lotada e lacrada
E enfeita com um paninho colorido
Bem em cima, na tampa.
Dá um lacinho com fita vermelha
E guarda.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

aCORdele

                                                 Suzana Guimarães


Quando você chegou, já era noite.

Recordo-me da plataforma negra, vinha um vento pela janela, tão espaçosa janela

De onde eu via o mundo passando, se equilibrando em linhas finas, tão finas!

O vagão do trem parando, parando...

Quando você chegou, eu me tornei estática.

Permaneço, enfim, o que fazer disso?

Era meado de qualquer coisa e eu sempre me senti atraída por metades

Metade da laranja, nunca quero mais.

Metade da cama, nunca a quero inteira.

Metade da madrugada, nessa hora, se acordada, me inteiro.

Metade de uma conversa no trem.

Meia-luz.

Quando você chegou, eu senti a boca aguando.

Suspendi o ar, trunquei minha respiração

Não havia ninguém naquela estação, além de você.

Havia sinais, um mapa bastante amarelado, ilustrações antigas, descoladas pelo tempo

Havia uma caixa dos correios, batendo a tampa da lata vazia

onde o vento havia acabado de bolinar.

Havia um som de música, muito longe, que eu não conseguia ouvir.





[Aí, chegou a moça de preto, ou o moço?

Alertou, me fez recordar...

Que eu então voltasse no tempo

E acordasse...

Quando você nasceu, mandaram me avisar.

Eu subia a trilha de Burle Marx

Tão colorida aquela trilha que subi por vários anos.

O mensageiro descia o caminho das flores, grama e árvores

Descia para me buscar, e eu já ia...

A gente se encontrou. Ele sentou e me fitou.

Era um cachorro de rua, feito todos os outros que lá viviam, próximos à casa dos livros.

De castanhos, seus olhos passaram para outra cor.

Eu vi.

Pensei que fosse reflexo dos jardins do paisagista

E segui em frente,

Não sem olhar dez mil vezes para trás.

Quando você nasceu, eu tinha de ser avisada.

E ele voltou. Encontrou-se comigo longe dos canteiros floridos

Deitou-se ao sol e me esperou passar.

Esperou pelo dia em que eu estivesse acompanhada.

E novamente ele se sentou, nos olhamos e o outro e eu vimos

a meia-tinta,

Eu vi a mudança de cor, o tom

Creio que ele queria a certeza da missão cumprida

Não corri. Entendi. Fui feita para entender e acordar]






Agora, veio você em pessoa.

Eu desci daquele trem

Para a noite escura e desolada

Quando você chegou naquela noite e se postou tão próximo à escada

Eu aguei e fiquei estática.

Você perguntou se eu havia chegado para a festa

Acenou para o longe.

Permaneci suspensa (pois faltou muito chão), paralisada.

Eu carregava uma mala, lotada, deixei que ela alcançasse o chão.

Vi que você carregava outra, parecia leve!

Ao teu lado, um cachorro. Sentado. Que me fitava tanto... igual a você.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

A NOSSA CASA, VOCÊ E EU

                                           
                                                      Suzana Guimarães


Agora é apenas a casa e eu.

Nada estranho, meu ninho sempre foi em mim mesma...

Ando deslizando, feito a bailarina do lago

Procuro não fazer barulho

Para que eu mesma não me perceba.

Agora é tudo como você quer.

Queimei a foto,

A flor ficou sem água.

Encolho-me igual sempre no sofá.

Você não anda pela casa, agora não somos nós...

Agora, a casa e eu, apenas

Mas dia passado, você tocou meus cabelos

Virei para ver quem era

Eu sabia que era você e

Na segunda vez, nem olhei

Mas nas duas vezes, passei a mão, refiz o gesto

Senti o peso ainda do seu toque.

Ouço suas músicas,

Nunca mais li seus livros.

E, deitada no sofá, eu teço a rede

Para nela mais tarde eu balançar.

Já não me assusto mais com a sua ausência

- você nem conseguiu partir -

Agora é tudo como você quer.

Mas agora é apenas a casa e eu...

Tudo se desfez porque o encanto chega num segundo, o amor em dois

A confiança nasce após um longo tempo que não se pode contar, mas que morre antes dos outros dois, muito antes.

Se eu me trancasse um pouco mais

Iria ouvir a sua voz

Mas agora é tudo como você quer

A sua voz, eu a ouço nas suas músicas

Na casa onde há somente eu.

domingo, 8 de agosto de 2010

SEGUNDA PELE

arquivo pessoal


             

Por que às vezes eu me retiro?
Não há planejamento ou certa alternância,
Eu me retiro para poder retirar a segunda pele,
Uma segunda pele que aderiu sem que eu a tatuasse ou a colasse com saliva
Mas que permanece.
Retiro-me quando essa segunda pele
Passa a me incomodar.
Bem que tento dela me livrar,
Esfrego com sais e esponjas no banho
Ou tento o contrário para que ela adira
Uso benéficos hidratantes após banho
Besunto-me toda para ver se ela fica de vez...
Mas é uma segunda pele.
E a primeira rejeita feito tecido desconhecido
O que para mim já se faz conhecido demais.
Tento estratégias, mergulho nas águas, ela parece me deixar
Na praia, penso vê-la nas águas salgadas indo em direção ao cais
Entro no mar aliviada, sem ela,
Mas à noite, ela vem com a maresia
E se instala novamente.
Palavras, palavras,
Se eu fosse vidente, eu as veria
Escritas no meu corpo, comendo os poros
Por isso é que às vezes eu me retiro
Numa tentativa vã de expurgá-las.
Verbais, sentenciais
Por vezes, imperativas
Por vezes, subjuntivas de enlouquecer
Uma segunda pele,
Uma segunda alma.
                                                                por Suzana Guimarães