terça-feira, 11 de maio de 2010
O Enterro - Parte III - Final
Um barulho de vozes surge ao longe. Um alvoroço. Ana Marta caminha de volta ao velório. Encontra as pessoas agitadas. O enterro seria adiado para mais tarde, ou talvez, o dia seguinte. É que a tia da morta, que vinha para o velório, morrera, no banco de trás do carro. Tombou a cabeça para o lado e quietou e ninguém pôs fé. Por certo, estaria cochilando, mas quando chegaram no cemitério, o parente sentado ao lado, desconfiou daquele corpo inerte, parecendo não respirar. Morrera a velha a caminho da morte da outra. Haveria com certeza de ser enterrada junto com a sobrinha, já que não havia outro mausoléu e as duas eram inseparáveis. Haveriam sim de enterrá-las juntas. A primeira que esperasse como sempre fez, pela outra, lenta, gorda e imprecisa. Porque a tia imprecisa até para morrer, não se casou, não teve filhos, não amou, não trabalhou, não estudou. Apenas penteou os cabelos. Os longos e negros e sedosos cabelos diante da enorme penteadeira de jacarandá. Penteou os cabelos e se admirou. Admirou os belos olhos violeta, a cútis de porcelana. Não viu a vida pela janela. Viu a vida pelo espelho do quarto ao longo de sua infância e juventude. Depois, quando as rugas chegaram e tomaram conta de toda aquela beleza, quando os cabelos caíram revelando-lhe a triste careca, ela tapou o antigo espelho com lençóis rasgados e se virou para o mundo. Virada para o mundo, catou doenças em si mesma e jogou seu ódio na cara dos mais próximos. Jogou principalmente na cara da sobrinha a sua careca, o seu dedo torto que o médico entortara e que lhe deixou impossibilitada de trabalhar, suas pernas trêmulas, seus passos inseguros. Passara muito tempo sentada e apenas lhe restou deitar. Deitar e reclamar. E a sobrinha corria em volta numa constante romaria a clínicas, especialistas e benzedeiras. E não havia enfermeira no mundo que quisesse ficar com ela. E não havia dinheiro que pagasse. Mas a sobrinha agora morta fizera de graça. Fez por toda a vida porque aquela ninguém queria, nem os padres. Porque a velha gostava de ir aos padres se confessar. Não que tivesse pecados, nada disso, apenas cumpria um ritual. Contava a eles o que bem lhe convinha, o que lhe viesse à cabeça. Porque sentia prazer em inventar histórias, delatar o que considerava pequenos crimes dos parentes, falar de torpezas e de fornicações. Gostava do prazer de sentir palavras chulas saindo-lhe da boca. E de pedir perdão pelo mau uso da palavra, “seu padre”. Imaginava e falava. Como fazia diante do espelho.
Ana Marta pegou o celular e ligou para o marido. Contou a novidade. Não sabia se voltava para casa ou se ficava na cidade até o final dos velórios. O marido riu da situação. A velha havia sido esperta. Tratou de morrer antes que fosse tarde demais. A velha não combinava mesmo com a única irmã que lhe sobrara e que agora chorava a perda da sua filha, seu braço direito. As sobrinhas-netas com certeza a trancariam num asilo. Melhor morrer. Melhor partir junto com a outra, pegar carona. E o que havia sido a vida daquela mulher a não ser uma eterna carona no dia a dia do outro? Nova, andava pela casa a passos de gato para flagrar alguma cena, alguma conversa, algum ato que lhe pudesse render frutos. Vivia de bisbilhotices, do sucesso ou insucesso dos parentes e amigos. Principalmente dos malogros. Não despertou sequer ódio, apenas desprezo e indiferença. Apenas a sobrinha lhe dava assistência e um certo carinho, o tanto que a tia permitia. A velha havia se esmerado para o enterro. Fez as unhas e colocou rolos nos ralos e raros fios de cabelo que lhe sobravam. Escolheu roupa de ir à igreja e passou perfume de alfazema. Tinha um sentimento de que, quando se morre, deve-se estar assim: arrumada, com batom e tudo. Roupa de baixo nova, principalmente. Passou a vida verificando o estado dos mortos em seus caixões. Às vezes, tinha ímpetos de passar um batom na defunta, não por compaixão ou delicadeza, mas por achar um desaforo morrer sem vaidade. Naquele dia, ela caprichou! Não que pensasse em morrer, não queria, mas havia um sentimento a lhe rondar o coração... seria um mosquito de pensamento a pousar-lhe nas ideias, seria o sentimento de que o tempo se esgotara, seria saudade da mãe e do pai que há muito já haviam partido. Bem que gostaria de revê-los. E rever também as irmãs também já mortas. O que estaria toda aquela gente fazendo?
Voltaram com o corpo da velha tia para trás. Tratar da burocracia, comprar caixão, encomendar flores e levar a mãe da prima morta para casa, para tomar um banho, um café e descansar para o próximo velório e para, mais tarde, enterrar as duas. Uma com cinquenta anos, a outra com oitenta e quatro. A primeira viveu cada dia como se fosse aquele o último; a segunda viveu a vida como se tivesse a eternidade toda para viver – um cágado. Estéril e seco. A primeira forçou cores fortes e alegres no cenário que se estendia ano após ano à sua frente; a segunda cobrou dos outros a coloração da vida. A primeira se deu. A segunda usurpou. E agora as duas seriam lançadas juntas num mesmo tempo na mesma terra. Mas dentre os afazeres a se cumprir não havia a necessidade de avisar ninguém. Quem estava lá para o velório da primeira, voltaria para o enterro e a segunda ganharia plateia cheia. Sorte dela, que se morresse sozinha teria meia dúzia de gente a lhe velar o corpo. Não haveriam de questionar da morte o tempo exato, se foi na hora ou não. A velha havia sido para eles apenas um vaso de planta, daquelas que precisam de pouca água, pouco adubo, pouco sol, pouca sombra. E assim era arredada um pouco mais pra lá ou um pouco mais para cá. O importante era movimentá-la ou acomodá-la, antes que criasse mais pragas em seu corpo. Porque o seu tempo de flor bela e majestosa havia passado e naquele tempo ela se poupava de sentimentos de amor, carinho e fraternidade. Ou melhor, ela não sabia muito bem o que era aquilo. Ela só conhecia o espelho, a escova de cerdas macias e aquela beleza a endoidar a si mesma. Para ela o mundo todo viria a seus pés, atrás de seu esplendor, de seus olhos violeta emoldurados por cílios negros. Ela nunca soube a hora que parou de ter aquela certeza tamanha, já que sequer movimentou um dedo atrás da vida, até o dia em que viu outro ser diante do espelho. E estranhou, mas também não fez alarde. Se nada aconteceu, não foi por culpa dela. Ela estava sempre lá: linda, pura e formosa. O mundo é que não se moveu ao seu encontro. E assim ela ficou, quase que sentada. Numa posição para muitos bastante incômoda, “quase sentada”, encurvada, prestes a se sentar. Para ela, Pola, estava tudo muito bom, ganhara sem esforço um apartamento para morar, uma renda fixa que pagaria seus poucos gastos até à morte, uma sobrinha para lhe carregar, sobrinhos para lhe contar suas aventuras sexuais, noras emprestadas para lançar-lhe olhares de compaixão, enfermeiras que não ficavam dois meses ao seu lado e padres um pouco pacientes. Da janela do seu apartamento, no centro da cidade, via casais nus fazendo sexo oral em suas camas perfiladas diretamente em direção às janelas abertas; via mulheres nuas se beijando nas sacadas de seus apartamentos, via mendigos mijando nos muros e postes, putas a balançar os peitos para futuros fregueses. Via a imundície do mundo. Que ela odiava, mas que olhava, por costume, para contar para o padre. Aquilo nem lhe dava comichões, apenas assanhava a língua. O bom era a besteira falada. O bom era saber que atiçava o padre. O bom era saber que também escandalizava o padre. E também as enfermeiras, a irmã, a sobrinha, quem fosse visitá-la.
As filhas da morta não esperavam por aquilo. Como é que aquela velha chata tivera coragem de estragar o enterro da mãe! Como é que podia ser tão imprecisa! Aquela não era hora de morrer. Teriam que lhe prestar honras e fazer a alma da mãe esperar. Como se a mãe ali estivesse, como sempre a acompanhá-las, como sempre a olhá-las com aqueles olhos amorosos, maiores que o mundo. Não sabiam que a mãe há muito partira. Que largara as velhas vestes e trocara de perfume. Agora, seria flores e seriam outros vales, mesmo que de longe as visse e sofresse ou se alegrasse. Mesmo que se escurecesse numa tristeza sem fim ou vagasse em linhos brancos. Mesmo que clamassem por ela. Agora ela ia. E ia sozinha. E não esperaria pelo cágado.
Ana Marta tirou da bolsa as chaves do carro. Balançou-as nas mãos. Passou pelas filhas da morta, pelo irmão da morta, pelos inúmeros convidados. Alcançou a portaria do cemitério e se foi.
3 comentários:
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Adorei o final... todas as metáforas. Consigo ouvir a voz da autora narrando, bem digressivamente. A imagem do espelho e da janela é a melhor...
ResponderExcluirE eu adorei o seu comentário. Obrigada!
ResponderExcluirGostei de Ana Marta. Apesar da mágoa do passado, como humana que é, não abandonou a prima. Pobre da morta, que mesmo depois da ida, carregou todos nas costas. Também deve ter virando santa... rs
ResponderExcluirCarina