(fotografia, por SCG) |
Nota: Antonio Cláudio Zamagna, o Tuca, pediu-me, em janeiro de 2010, uma carta, "...uma carta dando conta de um momento ou período de intensa felicidade a... um morto muito querido".
Ele disse que irá respondê-la, se você quiser conhecê-lo, vá ao DS, clica AQUI.
Enquanto me mantenho afastada, enquanto descanso e desenho novos caminhos para mim, enquanto estanco as águas do rio, deixo-a à deriva, a carta, quem sabe, aos céus, já que a vida parece mesmo ficção.
Los Angeles, 9 de novembro de 2011.
Querido,
É manhã, sinto frio, a neblina cobre o meu carro que segue a estrada, longa, silenciosa, solitária. É outono. Os ventos gelados batem no meu rosto, pois eu insisto em querer sentir o cheiro de maresia, mesmo que isso arda meus olhos... ah, as coisas do mar lembram-me você. Faz tempo, muito tempo... Hoje, é seu aniversário de morte. Como é que podemos contar, como que celebrando, o desaparecimento, o fim, o nada, o que nunca mais será? O que acabou.
Engraçado, estou tendo um "déjà vu"... Lembra-se? Minhas coisas e eu, meus jeitos... já escrevi esta carta antes. Já vi essa cena. E posso então voltar para trás, largar minhas inseguranças e a vontade de nunca mais lhe falar ou pensar em você. Não se pensa em mortos, não se fala com mortos. Será? Será que deliramos ao fazermos isso? Então, encontro-me em pleno delírio.
Eu fui feliz, sabe... Fui feliz durante aquele tempo, um pouco antes de você morrer. Eu fui feliz porque você foi uma febre, um carinho, um contato de mansinho que explodiu. Fiquei doente, sim, você me adoeceu. Mas, eu me sentia completa ao seu lado. Creio que você também. Nós nunca havíamos sido tão felizes. Éramos um, o caminho encontrado do outro.
Mas, a morte ceifa.
Você, meu sonho. Será que eu lhe disse o quanto realmente o amei, o desejei, o metamorfoseei para meus próprios gostos, como se eu fosse sua dona, proprietária? Não, claro que não. Quando eu ia dizer, veio a doença e levou você de mim.
Os pássaros voam baixo, mas céu escuro por aqui não é sinal de chuva. É apenas céu escuro e nada mais. Mas, por que os pássaros pressentem algo que eles sabem muito bem, não acontecerá?
Lembra-se da nossa primeira e última viagem? Lembra-se? Você se lembra? Eu queria saber, eu sempre quis saber a verdade, mas...
Veio a chuva forte. O nosso carro quebrou. Estávamos indo para um lugar tão lindo, florido, tantas montanhas, tanto silêncio... o mesmo de agora! Lembro-me bem, o carro parou no meio daquela escuridão e nós ficamos sozinhos. Eu poderia ter feito amor, delicado amor, com você, eu poderia...
E novamente estou tentando me enganar. Fizemos amor, sexo, qualquer nome para aquela coisa, insana, desvairada. Nada me importava muito, nem passado e muito menos o futuro. Seriam poucos dias, contados nos dedos... eu não havia bebido aquele vinho do jantar, mas fiquei com amnésia. Perdi as cenas em minha memória. Ficou apenas a sensação palpável de morte. Lembro-me bem, desde o primeiro toque, ponta de dedo num dos cantos da minha boca até o corpo todo por sobre o meu. Segredo, segredo, secreto.
O carro ficou apertado, e você foi me ajeitando, ajeitando, deslizando-se por sobre mim até que rolamos pra fora. E a chuva forte inundou por horas, por meses, por anos, até agora...
Mas, por que será que os pássaros voam baixo se não irá chover?
Foi a chuva que o matou ou fui eu ou fomos nós? Foi o nosso pecado? Foi o nosso sagrado?
Você que tanto me adoeceu... até hoje vivo o desequilíbrio físico... você que tanto me levou ao pico e ao fundo, a um afirmar e negar amor, à uma desordem geral em meus mais devotados arranjos de como se viver em paz, eu que tanto almejei o silêncio de uma vida solitária... você tanto me desequilibrou... e quem morreu foi você.
Febre alta, pulmões esgotados, dias numa cama de hospital, delirando, gritando, agitando braços, querendo fugir, querendo sem consciência.
Respiro fundo, tento prender o cheiro de maresia que sinto.
Eu era uma mulher que você punha no colo, dava silêncio, dava palavras, discursos inflamados, o melhor e também o pior de si. Você era o homem que combinava com a cor que sempre gostei para roupa de cama, papel de parede, travesseiro, flor e champanhe, cor de meia-luz... eu fazia você rir e chorar num mesmo segundo, e eu era só promessa. Você era um rio onde eu navegava sem saber nadar muito bem.
Fomos felizes! Isso é o que importa. Sigo em frente, feito os pássaros, fazendo movimentos sem muito pensar, sem questionar. Sigo.
Quando eu chegar em casa, escreverei essa carta para você.
Por Suzana Guimarães