Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

VOCÊ, O MISTÉRIO E EU



Ontem, fiz um texto enquanto eu dirigia. Anteontem, também. Eu os perdi antes que eu pudesse escrevê-los. Morreram em meio à música que tocava no carro. Tenho cartas para escrever, agradecimentos por fazer, livros para ler e tudo o que consigo é colocar as roupas para lavar na lavadora, depois, na outra máquina para secá-las. Consigo também estender os cobre-leitos das camas. Lavo à mão tudo o que não cabe na lavadora de louças e me perco por horas aqui, nesta outra máquina, em frente à uma tela que arde meus olhos. E é só! Não leio, não escrevo, não durmo, mal como. E só. Espero não sei o quê. Não estou esperando a criação, tenho certeza, ela não surge nos momentos de vazio. Sentada, espero o nada. E o nada não procria.

Não telefonei para os amigos distantes, desejando boas festas, bom recomeço, não organizei gavetas que prometi arrumar; o livro de receitas continua lotado de papéis avulsos, soltos, à espera de uma certa ordem. Não replantei as folhagens da varanda, não troquei de carro e nem a cor predileta para as unhas... sequer sonhei acordada. Mas, há um troço que percorre meu corpo por dentro, bem mais forte que minha inércia. Dizem que se chama seiva da vida. Esse troço faz eu me lembrar de você. Não fiz muita coisa, inclusive desaprendi várias, mas com certeza, eu o encontrei, você existe, enfim, posso olhá-lo nos olhos, tocá-lo, você não é mais um desassossego de alma. Você faz parte do meu mistério. Carrego-o há tanto tempo que ele se moldou a mim. Os cachorros não se parecem com seus donos? Pois bem, o mistério ficou a minha cara e eu a cara dele. Não posso sair do nada e decifrá-lo, já que somos unidade. E andamos por aí, olhamos o entardecer, um lilás coroando a praia e só. É tudo o que faço. Depois, lavo a roupa, como qualquer comida, me entupo de água e me sustento no vácuo, um lugar secreto, aberto no corpo. Esperamos, o segredo e eu, esperamos você passar, pois só você tem a capacidade da revelação, só você pode me transmutar, sou apenas a velhice de mim mesma tentando a claridade que você carrega nos olhos sem ao menos perceber, de tão aderente e antiga. Incipiente.

E então, seguiremos: você, a revelação (a alma do meu extinto segredo) e eu, como se tanto tempo não houvesse passado, apenas recordado insistentemente por se saber único.


Por Suzana Guimarães