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Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



sexta-feira, 4 de maio de 2012

É MAIO, AS CARTAS SERÃO DIÁRIOS?


(fotografia, por SCG)



Los Angeles, 3 de maio de 2012.


Querida Lunna,


O silêncio é quase absoluto na casa. Todos se deitaram. Ainda não viramos o dia, mas o fato de estar aqui, agora, beirando a madrugada, sozinha, cortinas quase fechadas, quase escuro, isso me felicita, e isso deve ser maio sorrindo para mim.

Ouço apenas o som do teclado do meu laptop, a geladeira e o ar-condicionado que liga e desliga, liga e desliga... o barulho dele é alto, mas o ar gelado que me alcança rápido e o fato dele fazer suas pausas me agrada muito. O barulho de geladeira é uma recordação que carrego, das melhores. Lembro-me de casa cheia, alugada na praia, meninos e meninas espalhados pelos chãos, e de uma geladeira que atravessava com seu som nossos sonhos. Ao lado, dormia, alheio a tudo, e roncando às alturas, o cachorro da família... noites na praia, quando a minha única preocupação era saber se iria fazer sol ou não no dia seguinte.

Há única luz que me alcança, que não vem do computador, é um abajur ao lado esquerdo da minha mesa. Design moderno. Cinza, com um pescoço comprido e móvel e eu posso jogar o facho de luz para onde bem entender. Ganhei de presente do meu filho um ramo de lavandas, amarrado numa corda de sisal, está preso nesse abajur, ele disse que era para perfumar. Mas, o que perfuma mesmo são as fotografias emolduradas, próximas desse abajur, elas sorriem para mim.

E sorrindo, voltaram os dias, as vontades; antes, tudo parecia desconectado, balões soltos no céu, à deriva. Meses de desequilíbrio físico, doenças incomodando a paz da alma, um enorme descrédito no ser humano, um balanço forçado, ocasional, mas picando feito agulha no nervo, tudo isso parecia não ter fim, corrente do mal a se arrastar atrás de mim. Até que outro dia, eu sentei e chorei. Cansei. Maio chegou, algum anjo se sentou à beirada da minha cama, alguém tocou em mim com olhar doce de despedida e isso não me pareceu triste, apenas contextual. Ah, minha amiga, ando pensando que amor é contextual! Partes anteriores se juntam à outras do texto e explicam tudo. Eu não sei dos outros, mas passei a vida fugindo do contexto em si. Disfarcei bastante, fingi que não estava prestando atenção, fiz um certo corpo mole, quis, não querendo querer, mas agora venho me freando, apontando os momentos de falha e corrigindo-me como a professora no primário, que repetia, repetia e ninguém parecia ouvir. Só que agora, estou atenta. Pulmões abertos, corpo em prontidão.

É maio e ele parece profecia de mãe. Um mês que cheira à flores de laranjeira, que tem um céu pintado de azul do mar e por aqui, botões brotam dos ramos, ansiosos por aparecer, a palmeira Havaiana enche-se de brotos verdes, após meses estática em paus. Estou cultivando ervas, e aumentei a minha coleção de cactos, esses, sempre me fascinaram, pela beleza exótica e pela resistência.

Já nem ouço mais o barulho da geladeira, me perdi da contagem de liga e desliga do ar-condicionado, ficou o som do teclado, o som da minha voz interna escrevendo esta carta, pois eu me perco em cartas, assim como me perco nos dias lindos, a alegria é tanta que desligo o sono.

Mas, é dia novo, nascendo. Não tenho uma vista bonita que me leva para um horizonte adormecido, mas tenho a sensação de que voltei, e voltei melhor, mais forte e ponderada, disposta a cuidar bem do jardim, renegando sem dor ou remorso as flores e os cravos que amargam meus toques doces, sossegados... tolice acreditar que o belo não machuca! Agora, eu quero escolher as folhagens do meu canteiro, arrancar sem dó o que não quero e aguar diariamente as mudas que ainda virão, dispostas a se aconhegarem neste meu coração afofado pelos ventos que maio traz.

Esqueci-me de perguntar por ti! Onde você deixou tua última xícara de chá? Teu último buquê de flores, a última imagem de ontem? Escreva-me. Conte-me sobre o sótão e seus segredos, conte-me também sobre as últimas receitas, diga-me do gosto que ficou após o último vinho. Conte-me sobre ontem e enumere tua lista para o amanhã, eu estarei à espera.

Beijos!

Suzana Guimarães