Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



quarta-feira, 29 de setembro de 2010

ELA, A MULHER DO BAÚ E EU

ilustração, R.Meneghini
                                                                               
                                                                                 Suzana C. Guimarães
                                                                                   
                                                                                 (# 1 da saga)

Ela não me via. Quando via, nem reparava. Eu via o copo com dois dedos de açúcar, mais dois de farinha da cor de caramelo e o resto de leite. Ela misturava lentamente e bebia com o dedo mindinho levantado. Eu pensava que tanto açúcar deveria ser para adoçar o corpo, quem sabe a alma também. Depois, ela pegava uma cadeira e se sentava na calçada. Sentava-se ao lado dele e nada falava. Ela fumava cigarro fino, mentolado. Só servia se fosse mentolado. Esperava eu chegar, eu acho. Esperava eu chegar, apontava o dedo para os quadros na parede, próxima à porta que dava para a calçada e dizia que eu nada sabia do que era capaz um homem fazer com uma mulher. Apontava o homem de bigode no quadro e falava sobre a mulher que passava o dia presa pelos cabelos, fechados num baú, até que ele voltasse. Eu olhava para ela. Eu era magra de corpo, porém gorda de inteligência. Eu desdenhava em plena mudez. Ele pedia para ela parar. Ela não parava. Eu olhava a noite, estendia a vista até o rio. O rio escuro que ele tanto olhava, encostado no parapeito da ponte. O que ele tanto olhava? Eu me perguntava. Talvez o nada. Talvez o escuro da solidão. Talvez, a certeza de que aquele rio transbordava e as águas lambiam as portas de sua casa.

Aquela casa. Eu andava nela respirando pó e mistério. Tantos panos encobrindo armas, moedas, segredos. Tantas portas fechadas. Tanta gente circulando naquele corredor que dava no único banheiro da casa. Usar aquele banheiro, um inferno. Sair dele, pior ainda. Passar pelas portas proibidas, "ninguém entra". Tanta gente e ninguém. Era só medo. O medo que empurrava nossas camas para o canto do quarto grande, para que a união das forças vencesse o medo. Casa do silêncio. Casa suja. Conceição passava vassoura, mas parecia que nada fazia. A vassoura ia até o quarto dele e a oficina. Lá, a vassoura parecia limpar. Lá, dava para respirar. Sem mistérios, sem chaves, sem passos lentos, que espiavam as conversas.

Eu deitava e sofria para pegar no sono, meu irmão também, minha mãe também. Eu olhava a luz que vinha da rua atravessando as frestas da janela do quarto. Fixava os olhos naquela pouca luz e pensava na mulher deitada ao lado do baú. Eu não acreditava, mas havia veneno correndo em minhas veias, a partir de então. Eu pensava que aquela casa abriria sua enorme boca e nos engoliria. Eu pensava nas traças que minha mãe varria para fora, antes de fechar a porta do quarto. Ela passava pano molhado... não antes de passar um pano nos meus olhos e ouvidos e me fazer esquecer dos cabelos longos da mulher, com seu vestido que eu nunca havia visto, cheio de rendas, igual falsa prenda.

20 comentários:

  1. A atracção do misterioso, do proibido...
    E há tentações que têm um maior poder de atracção que o íman.
    (Prosa da boa, da que se infiltra em nós!)

    Beijo :)

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  2. Suzana,

    Eu senti essa casa, como a casa do medo!(?)

    E do medo, aquela coisa absurda de querer penetrar no invisivel.
    Ou visivel?
    A coisa proibida, os segredos que não se pode saber.
    Ou que não se pode entender?

    É....

    (Me fez lembrar de algo, um dia eu te conto).

    Beijo minha querida!

    É tão bom ter você de volta!

    Se bem, que daqui você não sai ♥!!!

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  3. Gostaria eu de saber de que baú, mágico certamente, vc tira esses seus contos, essas suas histórias às quais nunca faltam os melhores ingredientes. Uma xícara de mistério, 2 colheres de sensualidade, um copo de memórias, uma pitade de melacolia, duas de medo e por aí vai... Sei não... só sei que leio e quero ler de novo, então com mais calma. E sempre fico com gosto de luz na boca.
    Muito lindo, Lily, muito.
    Beijokas.

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  4. Su,
    De volta, com carga total, um gosto de pavor, muitos pensamentos e duas colheres de talento. Duas? Um pote inteiro!

    Bjocas e bom ter vc de volta

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  5. Muito bom, como um flash back

    Flash de memórias que sobressaltavam nossa infância.
    Lembro do ranger noturno da casa de pau a pique...
    Do vento frio que entrava pelas frestas do assoalho de pranchão...
    Da escuridão dos cômodos e janelas de madeira sem vidraças...
    Da luz bruxuleante dos lampiões a querosene...
    Das sombras que nos assombravam...
    Olhos inocente arregalados prescutavam as trevas...

    É eu me lembro....

    bjos

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  6. Desses contos que nos arrastam... fui para dentro do baú, saí não sei aonde, e gostei da experiência, muito interessante.

    Beijo.

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  7. Me diga uma coisa, garota?!?!?! O que você faz em Los Angeles com toda essa literatura portuguesa de primeira linha e grandeza na ponta da agulha?
    Seus textos são demais, muito bons, muitos gostosos, bens escritos, ricos em emoções!
    Parabéns!
    Adorei!

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  8. Está tudo em paz agora? Voltou e voltou quente hem rsrs... Vou te confessar uma coisa: 99% da vezes que leio os textos alheios estou ouvindo musica, e quando leio os teus, eles conseguem fazer com que eu perca a TOTAL atençao na musica... é tipo hipnose, de verdade! Vai entender isso né?! rsrs vc é magica =) beijao querida

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  9. Alguém que estava ali, mas não estava...
    Interessante!!!

    Beijos Suzana!

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  10. Especial como sempre. Caleidoscópio fascinante.

    BeijooO*

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  11. Senti um certo assombro...o mistério me faz prender o ar.

    bjO

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  12. Muito bom Lily...
    Me parece aqueles casarões, que encontramos na Chapada Diamantina aqui na Bahia...
    tem tanto magnetismo e tantas portas fechadas,
    Senti sua falta.
    Beijos

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  13. R.M. propiciou a mudança da senzala pra casa grande?....rsrs

    bjo

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  14. Lufe,

    Estou aqui me rachando de tanto rir!

    Se a mudança não ocorresse, R.M. ia passar um bom tempo na senzala para deixar de ser besta e preguiçoso.

    Só você mesmo... minha barriga está doendo de tanto rir, mal consigo digitar...

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  15. Laia, laia, laia laia laia...
    Foi so uma escrregadela sinhazinha.
    Nao vao mais acontecer...
    Por favor pro tronco nao!
    Pequeno Blue

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  16. Blue, a da descrição é a outra, nessa casa grande até os fantasmas tem medo de entrar...
    Essa é de tijolo e chão de cimento...
    A outra era de pau a pique, dá mais medo.

    A Sra do Engenho, dona da grande plantação, fazendo das suas...A mãe da menina é brava....rsrs

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  17. Bom, acho que escapei das chibatadas desta vez, mas preciso ser mais cuidadoso...
    A dona e brava mesmo, me livrei por pouco.
    Um abraco,
    Blue

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  18. Lili/Suzy: Lindo conto mais parece uma casa assombrada cheia de fantasmas e medos. adorei.
    Beijjinhos
    Santa Cruz

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  19. Carissima, hoje estou aqui em dúvida. Confesso, não sei como chamá-la. Suzana é um nome com tantas possibilidades, tantas mulheres são Suzanas. Eu conheço muitas e Lily ainda não sei definir. Não sei, por isso, apenas me volto para você como sendo essa mulher de palavras que agora me levou de encontro a um passado infantil. Quando criança, nas férias, meus passos me levavam a uma pequena cidade. Uma provincia onde viviam meus nonos. A casa tinha um portão sonoro. Bastava abrí-lo para se saber da presença recém chegada. Corredor de rosas vermelhas que amava naquele tempo e hoje "odeio" (palavra forte, nem sei direito se realmente cabe aqui. Portas e janelas antigas, difíceis de abrir e mais dificeis ainda de fechar. Casa com açoalho, paredes descascando e um relógio de parede que cantava horas inteiras e horas vazias (como eram chamadas pelo nono). Na primeira noite, eu ouvia cada badalada daquele carrilhão que parecia zombar de mim. Então pela manhã, o medo havia desaparecido e eu nem sabia como. O silêncio se impunha sobre meu corpo e quase sempre e acabava me esquecendo de onde estava. Ia me lembrando aos poucos, depois do despertar. A casa, o chão, as paredes, a cozinha ao fundo, o quintal com o mastro de santo e a velha jabuticabeira. Um passado que vive em mim e me deixa assim, melancolica.
    bacio carissima

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