Ilustração por

Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



sexta-feira, 4 de março de 2011

ELA, O ANÚNCIO DA MINHA MORTE E EU


ilustração, R.Meneghini

                                                                        Suzana C. Guimarães
                                                 
                                                 (# 3 da saga)

Era inverno. Era noite ainda criança. As cadeiras já estavam nas calçadas. Luz de lampião iluminava suficientemente.

Dedos aflitos discavam no antigo e preto telefone. As tias um pouco longe, as mesmas de hoje, aguardavam. Não se ouvia respiração, apenas transpiro de angústia.

Dedos aflitos procuravam pela cidade das cadeiras nas calçadas. A vizinha atendeu, mandou chamar. Não encontrou. Dedos aflitos continuaram discando, o disco preto tinha a tarefa lenta de girar do início ao fim, dedo a esperar, novamente outro número, quanto maior o número, pior, o giro demorava a voltar. Unhas trêmulas quebrando-se em pontinhas no movimento.

Após horas, encontraram a minha mãe. Queriam saber, sim, eu havia morrido. "A menina morreu. Já sabemos. Mas, como? Como foi o acidente? Sabemos que não morreu mais ninguém, só ela". A minha mãe respondia, sem entender, "ela está viva, não morreu. Ela não está aqui, agora, ao meu lado, mas está viva".

Eu vinha pela avenida, noite fria, poncho vermelho que dedos no telefone preto haviam tricotado. Touca também vermelha na cabeça. Passaram por mim, não me lembro mais, comentaram que a caçula havia morrido mas que não era aquela que ali ia, pela margem do rio. Caudaloso rio escuro. As árvores resistentes na beira faziam barulho de chuva. Só barulho, não chovia.

Ela estava na porta da casa da vizinha, em frente ao rio, sentada numa cadeira. Atravessei, passei por ela. Perguntei pela minha mãe. Ela disse "a filha dela morreu, a caçula". Eu respondi que não. Eu vivia. Ela insistiu, "a menina morreu". A boca desenhada igual, o nariz impassível, sobrancelhas inertes, olhos iguais ao dia anterior, à manhã que passou... "Ela morreu. A vó mandou avisar".

Eu ri. Tirei a touca. Perguntei se não me reconhecia. Eu vivia. Ela me olhou, acredito que assim a incomodei.

Parece que mais um riso ecoou, lá de longe, da beira do rio. Deveria ser ela, aquela velha senhora de veste negra, mãos no bolso. Jocosa, travestia-se de nova.



Abaixo, os endereços das sagas # 1 e # 2. Basta clicar em cima.