Ela não me via. Acredito que fingia não me ver. Algo em mim e em meu irmão a irritava. Ir para aquela casa, lá dormir, lá comer, lá respirar pó e maldade era o purgatório, mas não tínhamos opção, meu irmão, minha mãe e eu. Eu andava pela casa evitando me encostar nas paredes, nas janelas, nas mesas, tinha medo. A menina, a filha da vizinha, passava boa parte do dia lá. Ela e a menina eram amigas e a menina aprendeu a pegar na xícara levantando o dedo mindinho. Na nossa mão direita, ela pegava, quando chegávamos, com as pontinhas do dedo, bem de leve, toque de barata. A menina e ela conversavam cochichando, eu ouvia ao longe, vozes sumidas, saindo dos quartos proibidos. Creio que ela ensinava a menina a fumar cigarro mentolado. Fino, elegante.
terça-feira, 9 de novembro de 2010
ELA, A ESPINGARDA, A VARA DE MARMELO E EU
(#2 da saga)
Ela não me via. Acredito que fingia não me ver. Algo em mim e em meu irmão a irritava. Ir para aquela casa, lá dormir, lá comer, lá respirar pó e maldade era o purgatório, mas não tínhamos opção, meu irmão, minha mãe e eu. Eu andava pela casa evitando me encostar nas paredes, nas janelas, nas mesas, tinha medo. A menina, a filha da vizinha, passava boa parte do dia lá. Ela e a menina eram amigas e a menina aprendeu a pegar na xícara levantando o dedo mindinho. Na nossa mão direita, ela pegava, quando chegávamos, com as pontinhas do dedo, bem de leve, toque de barata. A menina e ela conversavam cochichando, eu ouvia ao longe, vozes sumidas, saindo dos quartos proibidos. Creio que ela ensinava a menina a fumar cigarro mentolado. Fino, elegante.
Eu não me lembro bem, a minha memória se perdeu naquela casa, antes que ela tombasse ao chão depois de uma devastadora enchente. Mas eu recordo sons, luzes, vozes e ventos silenciosos. Eu me recordo de que ela não tinha sangue de barata correndo nas veias, de barata apenas os cumprimentos flácidos. Dedos leves, frios, nojentos, tocando minha mão de leve. Eu recordo, Conceição lavando panelas na bica. Conceição esfregava as panelas de alumínio com areia branca, polia, esfregava, enxaguava, até que elas brilhassem feito espelho, enfileiradas na grama, por sobre as pedras ao redor, brilhando de doer os olhos.
Eu me recordo da espingarda e da vara de marmelo penduradas na parede. Qual parede? De qual cômodo? Não sei, não me lembro. Meu irmão deve se lembrar, ele é mais velho que eu. Recordo as palavras, o dedo pequeno apontando para o alto. A ameaça. Meu irmão e eu evitávamos então o contato, o estar próximo. Ameaças. Ameaças.
A menina, filha da vizinha, fazia candonga. A menina gostava de ver o circo pegar fogo. A menina gostava de ver o quanto era estimada por ela. Um dia, ela veio atrás de nós, com a vara de marmelo em punho. A vara que corrigiu toda a família. A vara que não quebrava nunca, mesmo após várias chibatadas. Nós corremos, eu não corria, eu voava atrás do meu irmão. Eu o tinha, eu faria o que ele fizesse. Subimos o morro do santuário da casa do purgatório, o quintal. Mangueiras, ameixeiras, flores e mais flores, uma mata que beirava a estrada, lá em cima onde passava o córrego. Conceição viu quando passamos correndo. Acendeu o cigarro de palha e olhou para o céu. As panelas já estavam quase secas pelo Sol.
Subimos o morro e ela atirou. Sim, a morte sempre me rondou. Poucos anos antes, eu, por muito pouco, parei de respirar, de medo, diante de um homem com uma faca na cintura, perguntando por meu pai, dizendo que ia matá-lo. Mas, eu era muito criança, e na minha cabeça, quem ia morrer naquela hora era eu. Lembro-me da minha boca seca, meus olhos parados, fixos, lembro-me da cara dele, vermelha, e do cheiro de aguardente que saía daquela boca suja. A morte mantém um relacionamento comigo que nunca entendi. Hoje, penso se é de respeito, falta do que fazer ou atração por mim, ânsia de estar em minha companhia, sem contudo desejar me levar. Naquele dia, lá no alto do morro, ela atirou com a espingarda. Eu nunca soube se a distância estava a favor dela ou não. Eu nunca soube se ela tinha pontaria. Eu sei que ela trocou a vara de marmelo pela espingarda. Hoje, questiono-me sobre o que sei sobre uma arma apontada para mim. Hoje, já mulher, pois o ato, aqueles atos, perpetuaram-se na minha memória, acomodaram-se em minhas entranhas, fazem eu pensar que tudo pode acontecer por muito pouco.
Onde estaria a menina, a filha da vizinha, naqueles minutos? Rindo pelos cantos sujos da casa? Eu nunca saberei. Eu sei que gritávamos para ela parar e Conceição passou várias vezes por ela, carregando as panelas para dentro de casa. Não me lembro de mais nada. Com certeza, a minha mãe deve ter aparecido, deveria estar na rua, fazendo compras, visitando alguma amiga. Com certeza, a mata sagrada foi mais forte que ela, nos protegeu com seus troncos largos, com seus mistérios, seus sons. Com certeza, a morte pitava um cigarrinho de palha, divertindo-se com a audácia da outra.
19 comentários:
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lendo teu conto e pensando em como guardamos algumas lembranças e elas vão se apagando, e a gente confunde e se misturam com outras lembranças de outros lugares.
ResponderExcluirbeijo!
A menina cresceu e hoje a morte e o medo têm medo de olhar os olhos dela.
ResponderExcluirEmocionada com o seu conto!!!
Beijos Suzana
Su,
ResponderExcluirE quantas lembranças a gente guarda na alma.
Na pele.
A gente se transporta junto nos seus textos, nas suas lembranças.
Um beijooooo!
Oi Suzana!! Yudo bem?
ResponderExcluirQue conto, minha amiga! Muito gostoso de ler, tanto na forma escrita como na história. Parabéns!
Que bom ver também que ainda há como deixar comentários. É bom poder expressar - e agradecer - sobre as impressões sentidas.
Tudo de bom para você!!
Muito bom, Suzana, bem escrito, amarrado, gostei!
ResponderExcluirBeijo.
Você é muito talentosa! Escreve com uma profundidade admirável!
ResponderExcluirMeu beijooO'
Oi Lily, que historias interessantes, mal posso aguardar o proximo capitulo! Esta virando uma novela escrita. Gosto muito da sua pegada, me sinto aterrorizado, nao gostaria de viver na pele destes dois...
ResponderExcluirBeijos Blue
É, minha linda...há coisas nesta vida que a gente NUNCA mais se esquece...
ResponderExcluirbeijos no coração!
Bia
ELA, A MULHER DO BAÚ E EU (#1 da saga) está
ResponderExcluirpublicado em setembro/2010.
Muito envolvente seu texto, amiga!
ResponderExcluirAo mesmo tempo em que eu queria ler rápido para ver o que ia acontecer, queria que não terminasse, para manter a sensação de ainda participar da história.
Você e sua criatividade ímpar!
Beijo!
Su,
ResponderExcluirE vc querendo que Lily tirasse férias...
Quem nos deixaria de olhos presos por uma vara de marmelo e uma espingarda? Só vc, Su!
Que maravilha de texto!
Bjocas
O mais bonito de todas as lembranças é que elas se transformam em belas histórias.
ResponderExcluirbeijo
Denise
Qual mundo realmente teria medo de romper, este em que se encontra ou o que aquele que não quer deixar.
ResponderExcluirO difícil recomeço da construção do mundo. Sentíamos tão protegidos de onde viemos que em momentos inusitados temos quase certeza que a família na qual estamos ficara a proteger por 24hs, mas se não esta tudo bem, pois temos os jardins.
Na fuga o lugar mais alto se parece mais seguro quando criança, ainda hj quando adulto imitamos o mesmo figurado ato, ao levarmos o olhar aos céus em súplica.
Suzana, quanta riqueza neste pequeno tempo de leitura, crianças sempre historia intrigantes.
Que bom poder estar aqui.
Querida Su um lindo dia a vc
Bjokas em SolM.
Ótimo conto! Bem escrito, de boa leitura e de fácil visualização das imagens.
ResponderExcluirVou ler a primeira parte assim que possível.
Bjo
Estou adorando esta saga...
ResponderExcluirMuito boa a fluencia do texto.
Você nos faz prender a respiração ao lê-lo, como a criança fazia ao vivê-lo...
Posso vê-la de olhinhos arregalados e canelas finas a correr....
A memoria filtra os fatos e nos trazem de volta as sensações vividas à época, sem interpretações, só as sensações e os fatos....
Tchan, tchan, tchan, tchan....aguardando o proximo capitulo.
bjos
Começamos a ler e, às tantas, quem comanda a acção são as palavras, impregnando-nos com uma densidade impressionante. E, mesmo após a última frase, o efeito perdura, perdura...
ResponderExcluirO seu talento é imenso, Lily!
Beijo :)
Passando para deixar um beijo de carinho em você, sua fofa!
ResponderExcluirBiazinha
que bom que os contos de Lily sao ficcao. Ja estava aqui, achando que a mulher da vara de marmelo e de espingarda em punho era a sua avo...
ResponderExcluirbjim
Ainda estou vendo as cenas na minha mente e tentando identificar essa estranha, a menina, a vizinha. Por que ela está ali? Que importancia de fato tem ela e como já li a terceira parte, fiquei me perguntando se não foi de fato ela quem morreu?
ResponderExcluirE quanto a ligação com a morte; sempre tive esse contato intimo também. A primeira vez foi quando me levaram a um velório e me deixaram lá naquela sala com aquele corpo de homem envolto por flores, que estavam tão pálidas quanto ele. Não o conhecia, só o tinha visto passar por mim uma só vez e naquela noite sonhei com aquela lembrança, mas no sonho ele olhava pra mim e apontava o dedo em minha direção. Acordei com o coração correndo por uma estranha deserta e aos pulos fui pra junto de minha mamma que não sabia que eu tinha estado num velório. Não contei porque sabia que ela não me deixaria ir mais a casa da vizinha que era a única amiga que eu tinha na infância. Eu gostava de ficar lá sentada em sua varanda ouvindo suas histórias de mulher casada que vive isolada por causa do ciúmes do marido. Ela se sentia sozinha e eu sentia a sua solidão.
Depois disso, fui visitada pela morte outras vezes: na morte do meus pais; de uma amiga que passou pouco tempo comigo, da minha babá que passou muitos anos comigo e por fim do mio nono. Ainda lembro do seu silêncio naquele quarto frio. Perguntei a nona depois disso "quando serei eu e não os outros?" e sei que a perturbei com isso.
bacio