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Sobre contos e pespontos

Entre um conto e outro, alguns pespontos. Preciso dos pespontos para manter o principal equilibrado e firme. Preciso todo o tempo... Aprendi a pespontar quando a minha mãe me ensinou a fazer flores. Não, não se aprende a pespontar quando se faz flores. Essas apenas me lembram a minha mãe que me ensinou a pespontar os arranjos que a vida nos dá.



domingo, 22 de agosto de 2010

SOBRE A MORTE


fotografia, por SCG


por Suzana C. Guimarães

Eu me lembro sempre daquele dia, um dia cinco, de um mês três, de um ano terminado em oito. Quando tentei me levantar da cama, pela manhã, senti uma pontada que se estendia das mãos até o ombro e que depois se expandiu para as costas, alojando-se nelas, num ponto acima da altura da cintura. Parecia um mau jeito. Eu não sabia que era a morte que me tocava às costas, vindo me encontrar para o encontro da hora marcada. Mas eu ainda carregava vida nos braços, os tinha ocupados, e, ela, então, não pôde me entregar o manto que trazia. Tentou então colocá-lo nas minhas costas, igual a um agasalho num dia de frio, mas que você sente ser desnecessário, mas deixa. O dia todo foi assim. À noite, a morte foi mais tinhosa, arvorou-se por cima de mim e a pontada cresceu de forma desmesurada. As palavras morriam na minha boca, eu não podia completá-las, porque doía sempre nas tentativas, o suficiente para me fazer calar. Respirar doía. Falar doía. Não uma dor de cabeça ou de cólicas, aquela dor conhecida. Mas, dor desconhecida, um feixe aberto de nervos, talvez, que sofria entalhe a cada ar que entrava, uma faca enfiada várias vezes na carne, puxando para cima e para baixo, cortando no mesmo lugar. Não devia ser permitido a ninguém morrer aos poucos. Toda morte deveria ser de uma vez só. Uma pontada só. Um golpe apenas. Mas você pode ir morrendo aos pouquinhos... e entende que passou a vida toda sem se importar com o ar que entra o tempo todo em você.

É aí que entra o ponto. A parte que mais me atrai. Os poetas dizem que morrer não dói. Alguns escritores dizem que sentir a morte é o mesmo que o mais louco gozo sexual. Sempre penso sobre isso. Ou eles não sentiram a morte, ou eu é que não sei o que é o mais louco gozo sexual, porque da morte, eu sei.

A morte dói. A morte dói porque você percebe que está perdendo. Na morte, o corpo apenas padece de solidão e desinteresse, ou puro desespero, não há vigor, não há o trote do cavalo que suado tenta trocar o passo e se pôr a cavalgar, não antes de passar pela ânsia de saber o momento certo em que trocará o passo, saindo da passada rápida mas ritmada para um desenfrear sem chão, onde o corpo se estende todo para que se solte no cavalgar. Isso é o caminho do gozo.

A morte faz a alma silenciar-se. Quando a alma se cala, você perde as palavras, perde sua identidade. Você perde suas referências. No instante exato, você não tem pai, mãe e filhos. Eu me lembro bem, ansiei por aquele que me buscaria para me levar ao hospital. Se me lembrei de alguém, foi apenas dele. Eu o aguardei na porta da minha casa, sozinha, e eu tinha a visão paralisada no portão por onde o carro chegaria. Enquanto esperava, uma moça tentou se comunicar comigo, ela dizia coisas e eu apenas dizia que não precisava. Eu estava envergada por cima de mim mesma, não podia mais me estender. Lembro-me que a dispensei, ela era uma estranha e eu esperava aquele que chegaria no carro para me carregar. Talvez, quem sabe, quando ele tocasse em mim, eu pudesse receber o manto dela, da morte que aflita tinha pressa. A moça insistiu em ficar, em esperar comigo. Eu nem a via. Eu já havia esquecido do meu mundo, o que seria para mim aquela moça por mais bondade transbordasse dela? Quando o carro chegou, pensei sim, que era só estender os braços e receber a mantilha. Mas, não foi bem assim. Ao invéz de morrer, ganhei mais vida. Talvez fosse a vida daquele que me levava que era tanta a ponto de transbordar e eu lambi o que escorria.

Consegui um pouco mais de ar. Ou melhor, consegui jogar ar para dentro com uma certa habilidade. O truque era respirar pequeno, pouco, devagarinho, soltando pela boca mais devagar ainda. E, nesse processo de me preocupar com movimento tão banal até então, me ocupei de vida, e, por fim cheguei ao Pronto Socorro.

O resto é história. Ou melhor, memória. Volta sempre na tristeza.

17 comentários:

  1. Prefiro postar como ficção, mas foi real.

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  2. Suzana,a memória às vezes é tão cruel, nos fazer lembrar ter saudade,lembrar de morte... e até escrevendo sobre a morte vc é tão poética! Hj tbém coloquei um post sobre a morte do meu coração, meu post ficção, o seu tão real, tão verdadeiro, tão você... Lembro da morte duas vezes: minha bisavó e meu pai, os outros não fui velá-los (como um tio querido, meu avô, um amado...) talvez por medo de ver a morte de perto e tão viva... Chorei escondido, fiquei com minha dor, com minha morte interior...até que um dia ela bateu nas minhas costas, na minha porta, num fim de tarde, chovia, e, a clássica pergunta fiquei me fazendo: pq eu? tão jovem, mas os bons morrem cedo... acho que de tanto ficar deitado esperando o seu golpe de misericórdia, perguntando pra ela pq eu, ela, a morte, decidiu me dá uma colher de chá...voltar outra dia, outro ano, e... ela não deu mais notícias...mas acho que ela não me esqueceu, pq sinto uns avisos, uns toques, umas nuances dessa senhora certos dias, certas noite...
    Bjs*

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  3. Lindoo seu blog inteirooo..Lindos poemas também..Parabens..Estou precisando de seguidores gostar do meu blog e quiser me seguir okk..Bjus

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  4. Que texto incrível!
    EU AMEI...

    Bom domingo Lily
    Beijo

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  5. Lily,
    Como bem disse o Franck, é impressionante como você consegue ser poética até ao falar da visita real da morte.
    Recebi a sua visita algumas vezes nos últimos três anos, onde ela veio repentinamente me estendendo seu manto. Fingi que não vi, olhei através dela e talvez percebendo o meu desdém, se acanhou e se foi. Quem sabe volte num repente, me pegue de surpresa, de uma forma que não possa mais dela ridicularizar. O que certamente eu não teria, é a sua força de senti-la ao redor, insinuante, matreira e conseguir dela se desvencilhar. Talvez assim eu me entregasse.
    bjo

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  6. Suzana, vc está triste hj? Ou eu que a achei triste? Mesmo depois de tanta comida baiana, tanta bebida, tanta festa?... Só responda se achar que deve, mas fiquei aqui com vontade de perguntar isso a vc, me incomodando com suas entrelinhas...

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  7. MORTE É UMA COISA QUE ME DESPERTA INTERESSE. ENFIM MEXE COM TODOS OS MEUS SENTIDOS.

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  8. Nossa Suzana...
    Tão forte e tão real...
    E é claro que deixou até a 'morte' poética...
    Fiquei pensando que apesar dessa nossa 'relativa' vulnerabilidade, ainda bem que carregamos a vida nos braços, nas pessoas que gostamos, nas coisas que escrevemos...
    Um beijo grande viu?

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  9. Consegues ser poeta até para falar de um assunto tão triste...
    Lindo seu texto.
    bjosssssss

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  10. Meu Deus que magnifico! De verdade.. texto lindo, detalhado, misterioso.. realmente adorei =) Vc só posta textos bons aqui, Parabens! e Parabens pra Suzana, pq olha.. sensacional! beijao

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  11. Conheço esta história, muito triste mas vc sempre poética para lidar até com a morte.
    Parece a Mandy...driblando sua amiga/amigo.
    Blue

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  12. Ah, que lindo, que memória a tua.
    totalmente detalhado teu texto, eu
    pude sentir as sensações e os ambientes.
    perfeito!

    sou teu fã!

    Beijão querida!

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  13. "... Talvez fosse a vida daquele que me levava que era tanta a ponto de transbordar e eu lambi o que escorria."

    Para mim, a parte bela do poema.
    É para ti as lágrimas que escorrem...

    Nunca esquecerei.

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  14. Triste e belo ao mesmo tempo.
    (como teve final feliz, melhor encarar como realidade e não ficção).
    A vida é uma linha tênue, e para morrer, como diz o dito popular, basta estar vivo.
    Mas, lutemos pela vida até o último suspiro.
    Vale a pena!
    BjO*

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  15. Ola Lily e Suzy: A morte, amorte quando vier não avisa não são as dores que nos levam a morte ela quando vem entra pela porta mesmo que ela esteja fechada eu costumo dizer que o S. Pedro tem um grande Hotel e só chama alguem quando tiver lá uma vaga, há tambem digo que que é mau ele não quer lá, Estudei teologia e lido a quase todos os dias com Mortos porque sou eu que presido as cerimónias Funebres, ja escrivi como gostava que fosse a minha Morte procura no meu blog que esta la.
    Beijinhos
    Santa Cruz

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  16. Olá Suzana!
    Vc me emocionou,viu?
    Lindo o seu texto, incrível!!
    Uma ótima semana!
    Obrigada pelo carinho.
    Beijos!

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  17. Suzana, eu, na verdade, não acho a morte poética.
    Talvez, o modo como a gente morra, sim.
    Eu não consigo entender a morte, mesmo sabendo que nessa briga, entre a gente e ela, ela sempre sai ganhando.
    Não sei se morrer dói, mas o que dói é morrer "Se doendo".
    Eu vi muita gente pegar esse trem e partir.
    E eu ainda sinto muita saudade.
    Não sei a hora que o meu trem, virá me pegar na estação, mas sei apenas de uma coisa:
    Eu quero morrer não me doendo.
    Eu quero morrer igual passarinho.
    Talvez, a morte mais justa.
    PS: Ainda não vi a cara dela, nem a senti.
    E nem quero ver por um bom tempo rs.
    Mas me lembro de Cazuza, em seus últimos dias dizendo: Eu vi a cara da morte, e ela estava viva.

    Beijooooooooooooo meu!!!!!!

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