Suzana C.Guimarães
Franck... Franck...
Hoje, o meu texto é para você. Nada, nada a ver com o dia de ontem, tão florido que você me deu. Não tenho em mãos, nem em flores, um texto belo para lhe ofertar. Não estou brincando de "agora é a sua vez, eu já fiz". Aconteceu de ser hoje. Você falou nos "meus sinais" para você, mas você não sabe o quanto acredito em sinais. Sinais são avisos, vindos de pessoas, de coisas, do conjunto de coisas. E hoje, um grande conjunto de coisas veio para mim, veio avisar, mas eu, eu apenas vi, impotente para segurar a marcha dos soldados na noite escura. Há como detê-la? Não. Você apenas se afasta, arreda o corpo para um canto, delira freneticamente pela invisibilidade.
Vai, Franck, puxa a poltrona e senta. Eu não estou diante do mar, do seu mar, nem diante do meu. Eu não moro de frente para ele. Ele está ali, mas eu não o alcanço só com o esticar das mãos e da vontade.
Vai, Franck, puxa a poltrona. Você já se secou depois de toda aquela chuva de mais cedo? Se não, pega uma toalha ali na gaveta, porque eu me sinto tão infeliz que nem tenho forças para alcançá-la. O que me alcançou hoje foi um conjunto de palavras, lidas aqui, acolá, numa revista, num panfleto, num Blog de uma ou duas amigas, e, inclusive você que falou de lavar a alma - ficou sem saber se a tinha lavado ou não. E, então, eu pensei que, confiando a você o segredo da minha dor, você poderia me ajudar, ou simplesmente ouvir em silêncio, você que vê beleza nos traços que dou ao desenhar abraços e levezas.
Pois eu lhe digo, eu não lavei a minha alma. Eu perdi parte dela. Você pode me ver, Franck? Não. Você não pode me ver. Onde está a minha poltrona? Olha lá, está vazia. Também está vazia a cadeira preta, de couro, onde me sento todos os dias. Você gostaria de saber onde escrevo? Você quer ver a minha mesa?Ela é aquela ali, retangular, preta, de vidro. É linda! Eu escrevo num jardim preto, e você pode ver flores, folhas, pássaros, ladybugs (desculpe-me, mas joaninha em Inglês é mais bonito), margaridas, tulipas e borboletas, tudo, tudo transparente. Tudo desenhado aleatoriamente nessa mesa cheia de papéis, canetas, dois dicionários - creio não preciso mencionar em quais línguas, algumas pastas que nunca mais arrumei tempo para arrumá-las, um telefone sem fio que se toca eu sei de onde vem - mudinho o dia todo..., uma mulherzinha muito gorda, de uma ceramista famosa de Belo Horizonte, pelada, sentada à minha direita. Ah! Eu preciso falar dela. As coxas são as maiores que você já viu na vida, e os braços também. Ela é da cor da terra. Viajou para cá com um anjo de asas douradas e uma madona carregando um bebê. Vieram juntos, enrolados naqueles sacos que a gente adora estourar, entre minhas roupas, dentro da mala. Mas a madona sofreu rachaduras na aura, durante o voo. Há também o meu laptop que é branco e um par de mãos de madeira clara que meu filho me deu de presente no dia das mães, mãos que servem para segurar cartas. Estão vazias. Eu escrevia sobre sinais, e, essas mãos chegaram assim que comecei a contar histórias ou contar contos contados, como você preferir.
Ah! Eu não falei do detalhe: escrevo para fora. Li em algum lugar, certa vez, que quando você escreve para dentro do ambiente em que está, você está escrevendo para você mesmo e depois guardará tudo na gaveta. E que, se você escreve para fora, para uma varanda, que é o meu caso, você está escrevendo para os outros lerem. Pois bem, escrevo para uma varanda que toda tarde fica ensolarada. As cortinas que às vezes fecho, às vezes abro, são duas: a mais grossa é cor de vinho seco e a mais fina, marfim. Eu gosto muito porque as claras voam, apenas o suficiente para não incomodar. Na varanda há plantas e além da varanda, as palmeiras do prédio que enfeitam de graça a minha casa. Eu me sento de frente para a varanda que fica de frente para o elevador do prédio. Elevador? Você deve estar se perguntando... Elevador numa terra onde o chão treme? Sim, Franck. Só há três andares, o máximo permitido, eu moro no andar do meio. Sinto-me, quando olho para o elevador - se eu esticar um pouco só o pescoço posso vê-lo -, sinto-me uma daquelas velhas que fuxicam a vida dos outros o dia todo nas janelas, ou sentadas nas cadeiras, na calçada (será que isso ainda existe, as cadeiras nas calçadas? Hum, isso me faz lembrar a minha avó paterna... deixa pra lá, outro dia conto). As cortinas marfins e as palmeiras me escondem um pouco, mas eu, na realidade, não entendo muita coisa, fala-se de tudo aqui, Inglês, Espanhol, Coreano (lembram-me gatos) e uma outras línguas que não faço ideia. E há um problema nessa terra desértica, além de terremotos, as pessoas gostam de usar numa mesma frase, um pouquinho de cada língua. Franck, Franck, você não imagina o que é uma Torre de Babel.
Bom, mas falando em Torre de Babel, acabei por me lembrar do quanto me sinto desgarrada, um pedaço da minha alma, encardida ou não, se desprendeu. Tudo começou por conta de uma das borboletas da minha mesa. Uma delas decidiu conhecer o Brasil. E falando em Brasil, eu me lembro de que lá, para mim, pelo menos para mim, com certeza, tudo era uma grande Torre de Babel, apesar de eu tentar nunca errar no Português. Se você me perguntar qual das Torres prefiro, direi que a daqui. Pelo menos, aqui, a gente dá um sorrisinho e diz, "no English". O pequeno sorriso e essas duas palavrinhas vale feito diamante. Um dia, se eu ajudar, vou falar Inglês e Espanhol fluentes, mas sempre terei, numa daquelas bolsas enormes que carrego, esse meu tesouro, guardado para os momentos mais convenientes.
Aceita um chá, Franck? A semana toda nublou, mar cinza, céu cinza, sinal cinza e eu nem percebi. Hoje, está fazendo calor. Eu não tomo chá, não gosto, mas em cima da mesa, ali no canto, penso que há um. Chá, eu tomo, se for de erva-cidreira, mas nem sei se isso existe por aqui.
Pois bem, a borboleta da minha mesa decidiu voar, não viu os sinais, e se foi. Mais tarde, ela os viu, mas já era mais tarde. A infeliz bateu as asinhas lá, Franck, e eu, aqui, morri. Morri. Por isso você não me vê. Agora, sou apenas presença, feito a presença da Cecilia. Sou pedaço de alma, perdi o viço, meus braços se quebraram numa tentativa de abarcar a vida, ontem, quando tudo aconteceu, eu pensava em abraços. A infeliz bateu as asinhas lá e aconteceu o terremoto aqui, sempre tão aguardado, aquele que não só treme de leve fazendo lembrar labirintite ou assalto, aconteceu o fatal, aquele que vem e mata. Caiu tudo, Franck. O fogo surgiu queimando, ardendo. Lambidas de uma quentura insuportável no corpo que corria atrás da alma. Pelo menos, era fogo, não era água. Pois não há poder que pare a água, nada, nada a detém. Contudo, a água pode apagar o fogo, ou então só o tempo. Talvez, mais do que possamos ver tenha sobrado. As vigas não eram de boa sustentação, parte da casa, a maior parte dela, se desfez. Nem precisa pensar em crematório, eu não quero mais virar cinza. Hoje, eu sou cinza.
Senta, Franck. Pelo menos a minha cabeça não dói tanto quanto durante o tremor. A mulherzinha da minha mesa, a pelada, está lá, intacta, leva para você. É ela a minha musa inspiradora, ela saberá lhe indicar os melhores caminhos. Ou, se quiser, fica com o anjo das asas douradas, ele também resistiu. Procura mais tarde, a ceramista famosa de Belo Horizonte, as peças dela são muito resistentes.
Espera, Franck! Eu ainda estou aqui. Sinta o cheiro de mirra, muitos me aguardam, mas eu ainda ficarei por aqui, tenho coisas para resolver. Não tenha medo. Não se inquiete. Já não posso mais nada, nem bem, nem mal fazer. Leva para a minha mãe o que restou da madona com a criança no colo. A aura já não existe mais, mas a minha mãe sabe fazer perfeitos remendos, ela fez isso a vida toda, remendou, colou, pespontou, alinhavou. Ela me amou. Entrega meu presente para ela, assim ela poderá acender a vela. Assim, eu poderei resgatar o meu pedaço que se perdeu. Mas, é preciso a madona, é preciso a vela. Só assim a minha mãe me verá inteira.
Sente-se, Franck. Ainda há música.
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